Música que ensina e transforma
O violinista Ledison Manrique trouxe a experiência no sistema de ensino musical da Venezuela para educar jovens e crianças de Vitória da Conquista por meio do projeto Neojiba 16 de novembro de 2019 Larric Fernandes e Péricles da Costa LimaViolinista e licenciado em Educação Musical, o venezuelano Ledison Manrique chegou a Vitória da Conquista em maio de 2019 e, desde outubro, é professor do Núcleo Territorial do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), localizado no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima. O programa, criado por Ricardo Castro no ano de 2007, vinculado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia, promove o desenvolvimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social por meio da música.
Manrique, que começou a estudar música aos quatro anos e terminou a terminou a faculdade na área em 2014 na Universidad Nacional Experimental de las Artes (UNEARTE, já tinha participado de um projeto parecido ao Neojiba, em Caracas, no núcleo da Hoyada, como coordenador do projeto Simón Bolívar. Em Conquista, como na Venezuela, o músico acredita que a música é capaz de transformar a vida das pessoas pelo respeito, pela disciplina e a constância. “É o dia a dia, o trabalho de formiga, de todos os dias fazer um pouco mais.” Conheça mais sobre sua história de vida, sua formação, como passou de músico a professor e chegou a Conquista na entrevista exclusiva ao nosso site.
Avoador: Como aconteceu o seu primeiro contato com a música?
Manrique: Eu nasci em Caracas, capital da Venezuela, e o meu primeiro contato com a música aconteceu aos quatro anos de idade. Um tempo depois, meus pais me levaram a um núcleo do sistema de orquestras em Caracas, o núcleo San Augustín. Na Venezuela, o sistema permite que você ingresse muito novo. Eu queria começar com o trompete, só que eu sofria de asma e não tinha força nos pulmões. Então me propuseram o violino, que foi um instrumento que de início eu não queria, mas fiquei e comecei meus estudos com a professora Tupac Amaru Ribas. Ela foi a primeira pessoa que me deu um instrumento, foi quem ajudou muito nesse primeiro momento. Eu comecei a crescer lá dentro.Eu avancei de uma orquestra infantil para uma pré-juvenil, depois para uma juvenil e, logo, tive a oportunidade de fazer parte de um grupo nacional. Mas eu ainda era muito pequeno, e o nível musical da Venezuela é muito alto, então fiquei por pouco tempo. Depois, ingressei na Orquestra Infantil de Caracas e comecei a me desenvolver junto aos maestros Rubén Coba e Eugênio Carreño, e finalmente com o maestro Ulyses Ascanio, que tomou as rédeas da orquestra. Trabalhamos muito e a Orquestra Infantil de Caracas se converteu na Sinfônica Juvenil Teresa Carreño, uma das melhores orquestras juvenis da Venezuela, e eu, graças a Deus, fui um dos seus fundadores.
“A música não é apenas tocar notas, ficar sentado numa cadeira, seguir a regência. É algo que transforma, que por trás tem muito trabalho.”
Avoador: Quando surgiu a primeira oportunidade de ensinar música para crianças?
Manrique: Eu decidi sair da Orquestra Sinfônica Juvenil Teresa Carreño e me dedicar aos meus estudos universitários. Eu comecei no Instituto Universitário de Estudios Musicales, o IUDEM, que posteriormente se transformou na Universidad Nacional Experimental de las Artes (UNEARTE). Eu passei a exercer a docência com 18 anos, e o primeiro núcleo em que tive a oportunidade de ensinar foi o de Montalbán, em Caracas. Depois, eu me mudei para o núcleo da Hoyada, porque eu já estava no período final e precisava fazer o meu trabalho de conclusão, que tem a ver com as crianças pequenas, a mistura de um método de educação musical com a técnica inicial do violino. Em Caracas, o único núcleo que tinha esse tipo de matéria era o da Hoyada, então pedi minha transferência para lá. Deu certo, e aí comecei a experimentar com os pequeninos da pré-escola, desde os três anos de idade até os seis. Por isso que tenho cabelos brancos (risos). Assim que me graduei, em 2014, passei a formar a equipe administrativa do núcleo da Hoyada, como coordenador do projeto Simón Bolívar, que consiste em levar os professores do núcleo às escolas nos arredores. Tive sob minha coordenação 22 professores, e fiz muitas apresentações. Nesse mesmo ano, eu fui promovido à gerência graças ao maestro Andrés González, que era o diretor principal, encarregado de todos os núcleos. Ele olhou o meu trabalho, gostou e me fez uma proposta para fundar um núcleo do zero em uma das favelas de Caracas, que foi o Núcleo de Santa Cruz del Este. É uma favela muito pobre, com famílias disfuncionais e era minha primeira experiência como diretor. Não tinha equipe, não tinha nada, só os colegas professores, que no princípio ajudaram a encaminhar o projeto. Graças a Deus, deu certo e fiquei na direção do núcleo durante dois anos. Alcançamos muitas coisas: a maioria dessas crianças só conhecia a rua de sua casa, e eu as levei para se apresentar no Teatro Teresa Carreño, que é um dos teatros mais importantes de Caracas e da Venezuela. Elas se apresentaram na sala principal, a sala Ríos Reyna, e isso para elas, para suas famílias, teve um impacto muito bom.
“Na Venezuela, a competência e o nível acadêmico são muito altos. Eu lembro que havia 48 núcleos (musicais) só na capital, Caracas. E a capital tem a metade do tamanho de Vitória da Conquista.”
Avoador: Como foi essa mudança de planos, de músico a professor?
Manrique: O sistema de orquestras da Venezuela, e o do Neojiba também, trabalha a inclusão social. Eu cresci numa orquestra com pessoas que tinham poucos recursos, assim como com pessoas com muito dinheiro. Tem gente que continuou com os estudos musicais, e gente que seguiu outros estudos, como Medicina, Direito, Arquitetura, Engenharia. Esse sistema dá muitas oportunidades. O principal é ascender numa orquestra, como músico formado, tanto de orquestra quanto solista. Mas isso requer muito estudo do instrumento. E lá na Venezuela, a competência e o nível acadêmico são muito altos. Eu lembro que havia 48 núcleos só na capital, Caracas. E a capital tem a metade do tamanho de Vitória da Conquista. Geralmente, há dois ou três núcleos por cidade do interior, então há muita gente em formação. Eu cheguei a um momento da minha vida em que comecei meus estudos universitários e vi que sempre aparecia uma criança de idade menor e tocava no mesmo nível de um adulto. Então as oportunidades vão se acabando ao nível de orquestra. E ao nível de solista é muito mais difícil. Como eu estava iniciando no mundo da educação, comecei a testar exercer a docência, a dar aulas aos pequeninos, a colegas, e vi que eu tinha a vocação, que desfruto muito de dar aula. Então fiquei. Sinceramente, eu não pensava nessa área de educação. Eu também experimentei a parte de regência, porque o sistema dá essa oportunidade. Tive a possibilidade de reger alguns grupos, depois fiquei com a direção de outros grupos e são muitas experiências que o sistema de orquestra vai dando, até mesmo na manutenção dos instrumentos.
Avoador: Como surgiu a oportunidade de vir para Conquista? Você já tinha planos de sair da Venezuela?
Manrique: Devido à situação econômica e política da Venezuela, eu comecei a conversar com muitos companheiros da música. A música faz isso, você cria uma família. Eu cresci com quase 200 músicos, então é uma família muito grande. Meu amigo Douglas Marchan me convidou para cá, diretamente para Conquista. Aceitei o convite e vim com a minha esposa. Douglas falou para fazermos um trabalho juntos. Ele começou a trabalhar comigo lá na fundação do Núcleo de Santa Cruz del Este, crescemos juntos por toda a orquestra, desde os 7 anos. É uma amizade de 20 anos, praticamente. Ele me apresentou ao maestro João Omar. Eu faço parte da Orquestra Conquista Sinfônica como músico voluntário. Minha esposa também trabalha com música, foi assim que nos conhecemos. Ela tocava flauta, mas também se dedicou à parte de educação. Ela é especialista em musicalização infantil. A situação na Venezuela piorou e falamos com Douglas. Vendemos algumas coisas, juntamos algum dinheiro para vir e deu tudo certo. Chegamos e começamos a trabalhar. Nós começamos trabalhando com o projeto do Douglas, só que era muito difícil dois professores “top” juntos buscando alunos. Então ele foi para o lado dele, eu fui para o meu. Comecei a dar cursos de música.
“Quando uma criança dessas entra num núcleo, tanto da Venezuela quanto daqui do Neojiba, essa criança começa a transformar não só a ela mesma, mas a todo o seu círculo familiar.”
Avoador: E como você se tornou professor no Neojiba?
Manrique: O maestro João Omar falava de oportunidades em Guanambi, em Jequié, em outras cidades. Eu conversava com a minha esposa: “Se temos que começar do zero de novo, somos praticamente especialistas”. Então estávamos pensando, olhando para as possibilidades. De repente, surge a oportunidade de trabalho em um núcleo em Vitória da Conquista, que começa agora a ser um núcleo territorial. Obviamente, o maestro João Omar falou para a gente sobre esta oportunidade. Então eu fiz o concurso e, graças a Deus, passei. O Núcleo de Prática Musical do NEOJIBA ficava no Programa Conquista Criança, no Cidade Modelo. Lá o projeto é formado por uma orquestra infanto-juvenil, que foi a orquestra que se apresentou na inauguração do Núcleo Territorial de Conquista. Ali existe também um coral e duas orquestras pedagógicas, que estão em formação para ter um maior número de músicos. A primeira etapa era a inauguração, ela já foi feita. Agora estamos no processo de mudança para o Centro de Cultura, para que tenha o funcionamento completo aqui. Por enquanto estamos mantendo por dois ou três dias na semana a orquestra infanto-juvenil no Centro de Cultura. A orquestra pedagógica se mantém no Conquista Criança. E o coral também funciona lá. Se Deus permitir, em 2020, todo o Núcleo vai se mudar para cá. Estamos nesse processo de conseguir o transporte, o lanche. Porque são crianças, muitas delas em situação de vulnerabilidade. Muito parecido com o trabalho que eu fazia na Venezuela, por isso eu me dou bem com elas.
“Uma sinfonia dura 20 minutos, mas teve meses de trabalho. Isso é o que as pessoas não conhecem. É preciso criar essa cultura não só para os músicos, mas para o público também: o respeito, fazer silêncio, deixar o celular no silencioso. É um processo.”
Avoador: Qual a importância da arte na vida das pessoas? Quais as diferenças entre o Brasil e a Venezuela?
Manrique: Pela informação que eu tenho do Brasil, o Neojiba é o único projeto que tem essa estrutura, de Núcleo, de escola de música. Não conheço a existência de um projeto assim em outros estados. Sinceramente, eu não conheço. Mas sei que existem orquestras no Brasil. São Paulo tem uma orquestra, o Rio também tem sua orquestra. Há muitas capitais que têm esse movimento cultural. É muito importante o que faz a música, a arte, na vida de um ser humano. O maestro José Antonio Abreu falava: “A música transforma vidas”. Gira completamente a vida. Eu observei aqui e vivi isso também na Venezuela, uma criança que vem de uma família disfuncional, de baixa renda. Essa família só procura ter alimentos, tem outras prioridades que não são os estudos, ou o que seja. Quando uma criança dessas entra num núcleo, tanto da Venezuela quanto do Neojiba, essa criança começa a transformar não só a ela mesma, mas a todo o seu círculo familiar. Ela começa a ver o que é o respeito, a disciplina, a constância. É o dia a dia, o trabalho de formiga, de todos os dias fazer um pouco mais. No começo é difícil porque ela terá toda a família contra: o barulho, “Ah, para com isso”, “Isso não serve”. É assim porque eu passei por isso. Quando essa criança faz a primeira apresentação e toda a sua família vai, assiste ao trabalho dela, o trabalho em grupo, o respeito é diferente. Então já percebem que a criança precisa de um espaço para estudar, e mesmo que seja uma casa pequena, onde moram seis pessoas em um só cômodo, pensam: “Ok, ela vai estudar, ela precisa”. Todo mundo faz silêncio. Muda, transforma a relação da família. A música é vida. A música é arte. A música que se toca na Venezuela é a mesma música aqui no Brasil, na Argentina, na Europa. A mesma teoria. Os músicos são quem fazem a diferença. A música não é apenas tocar notas, ficar sentado numa cadeira, seguir a regência. É algo que transforma, que por trás tem muito trabalho. Uma sinfonia dura 20 minutos, mas teve meses de trabalho. Isso é o que as pessoas não conhecem. É preciso criar essa cultura não só para os músicos, mas para o público também: o respeito, fazer silêncio, deixar o celular no silencioso. É um processo.
“A cidade vai crescer musicalmente, e eu vou fazer parte desse crescimento cultural.”
Avoador: Para você, como é lidar com a língua e os costumes diferentes?
Manrique: Antes vir para Vitória da Conquista, eu e minha esposa fizemos um pequeno treinamento com a língua, com o português. Só que não funcionou porque quando chegamos aqui, não entendíamos. O sotaque é diferente. O português ensinado pelo Google ou de qualquer aplicativo na internet é um português “perfeito”. Nós sofremos saindo de lá numa situação muito difícil, deixando a nossa família. Somos recém-casados, e fazíamos as perguntas: “Quando vamos ter filhos?”, “Quando vamos comprar uma casa?”. No começo, estávamos um pouco instáveis com o trabalho. Eu e minha esposa chegamos aqui em 15 de maio e até 15 de junho tivemos muito trabalho: apresentações, casamentos, a orquestra. Chega 16 de junho, o São João: paralisou a cidade completamente. Paralisou o trabalho, tudo. Esse período, essas férias, foi muito difícil para nós, porque o já pouco de dinheiro que tínhamos estava acabando e não achávamos trabalho. Eu fui ajudante de pedreiro, ajudante de segurança, coisas totalmente fora da minha área. Trabalhei um mês assim, deu para achar uma estabilidade até que a cidade retomasse o ritmo de trabalho. Em alguns momentos de desespero, minha esposa e eu perguntávamos: “O que fazemos? Voltamos?”. Não pensei que iria acontecer a oportunidade no Neojiba. Eu conhecia o projeto, porque o meu amigo Douglas me falou sobre, mas ele disse que não abririam vagas logo, que eu teria que esperar. Fiquei tranquilo e deu certo, graças a Deus. A cidade vai crescer musicalmente, e eu vou fazer parte desse crescimento cultural.
Fotografia e Edição: Yasmin Miranda
* A entrevista teve partes editadas para possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do texto.