“O feminismo negro dá força para que as mulheres negras se articulem e conquistem espaço”, diz Núbia Regina
A professora e escritora relembra a sua história e aponta a luta e os avanços do movimento negro e das mulheres negras no Brasil e também em Conquista 20 de outubro de 2022 Alice Santiago, Karen Alves, Nadiane Santos, Sara DutraNegra, feminista, mãe de três filhos, esposa e avó, Núbia Regina Moreira é uma referência no Brasil nas pesquisas e discussões relacionadas ao feminismo negro. Ela tem graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, também, é doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UNB). Atualmente, é professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), onde também faz parte do Mestrado em Educação, e líder do Grupo de Pesquisa Oju Obinrin Observatório de Mulheres Negras.
Núbia nasceu em São Luís, no Maranhão, mas forjou a sua identidade, enquanto parte de quem é, no Rio de Janeiro, para onde se mudou com a família aos três anos. Foi na capital fluminense também que floresceu o seu interesse pela pesquisa voltada para a política e redes de mulheres negras; as mulheres negras no campo da produção cultural brasileira; currículo e políticas subjetivações e processos de racialização e teoria curricular e políticas curriculares feministas. Ela é autora do livro A Organização das Feministas Negras no Brasil, resultado do seu trabalho de doutorado, e tem artigos publicados relacionados ao feminismo negro.
Em entrevista ao Avoador, a professora e escritora Núbia Regina relembrou a sua trajetória profissional e pessoal, explicou a luta das mulheres negras, detalhou sobre o feminismo negro em Vitória da Conquista e mostrou o quanto as mulheres negras fizeram e fazem a diferença no movimento de mulheres pela igualdade de direitos. “A gente sabe que a desigualdade é muito grande aqui no Brasil, e ela se fundamenta na raça e no gênero”, disse Núbia.
Em que momento o feminismo entrou na sua trajetória acadêmica e como você adotou a corrente feminismo negro?
Eu entrei no curso de Ciências Sociais para poder entender essa questão do negro no Brasil, assim, já entrei na universidade com essa perspectiva. Vinha de um colégio federal, já tinha uma atuação no movimento estudantil, então foi um caminho quase natural fazer Ciências Sociais. Nos anos de 1990, existia muita discussão da questão racial no Brasil por conta de 1988, centenário da abolição, e o movimento negro brasileiro já estava denunciando a farsa da democracia racial, e isso também chegou na universidade. Tinham muitos pesquisadores estudando essa questão, porém a maioria deles eram brancos, não existiam negros estudando a questão racial no brasil, e eram essas pessoas brancas que nos formavam.
No primeiro semestre, eu já comecei a pesquisar relações raciais. Depois de quase quatro anos nessa área, eu migrei para outro grupo de pesquisa que trabalhava com a violência conjugal fazendo alquimia de gênero, raça e etnia. Foi nesse momento que eu comecei a me aproximar das pesquisas de gênero e feminismo, esse foi o percurso que foi me levando e me moldando para me fazer quem eu sou hoje.
Depois, eu fui para a Escola de Serviço Social da Federal do Rio de Janeiro, e nessa escola, eu fui orientada pela professora Eliete Saffioti, que escreveu o livro “A mulher na sociedade de classe: mito e realidade”. Nisso, existia uma pesquisa para se estudar os casos de violência às mulheres no Brasil. E é, nesse momento, que eu me aproximo de uma pesquisa feminista. Aliada a minha formação acadêmica universitária, eu também tive a formação do Fórum de Mulheres Negras no Rio de Janeiro, onde eu fui militante. Então foram esses dois espaços que me formaram, foi quase que um caminho natural eu querer entender, já naquele momento, como é que se dava essa organização das mulheres negras no Brasil.
Eu já me entendia como feminista, porque minha mãe também nos criou, eu e minhas irmãs, muito sozinha. E a gente teve que aprender a se movimentar olhando para minha mãe, olhando para as minhas tias. Muitas mulheres da minha família são mulheres sem parceiros fixos, e isso fez com que a gente fosse e enfrentasse a vida, porque tem que enfrentar mesmo, levantar e fazer acontecer. Mas eu não tinha essa ideia da dimensão do feminismo como uma teoria política. Na verdade, eu só me considero mesmo uma feminista negra dos últimos 10 anos para cá, no sentido de que eu entendo que as feministas negras querem dizer que a raça é importante para entender as diferenças entre mulheres brancas e mulheres pretas. Todas nós mulheres sofremos com a violência, independente se somos negros, mas a gente sabe que as negras, as indígenas, as periféricas têm menos recursos simbólicos.
Depois de um tempo, eu já não queria mais estudar tanto a questão racial, porém eu acabei acrescentando uma outra categoria que foi a cultura, assim, eu trabalhei com o samba de autoria feminina de mulheres negras, focando na trajetória da Tereza Cristina. Quando eu começo essa pesquisa para saber quem são as compositoras de samba, meu interesse não era na interpretação, pois nós temos um cabedal de mulheres intérpretes que são grandes cantoras. Mas o meu interesse ainda hoje continua sendo achar quem eram as compositoras de samba, pois, lá na minha tese, eu defendo uma hipótese de que é pela arte ou pela cultura que as populações, as mulheres conseguem também uma mobilidade social.
Também, a forma como os sujeitos, os grupos sociais são tratados na sociedade diz muito sobre aquela sociedade. Então a gente sabe que a desigualdade é muito grande aqui no Brasil, e ela se fundamenta na raça e no gênero. Por isso, é um desenrolar, que, ao mesmo tempo que eu estou fazendo pesquisa, eu estou me auto modificando. Percebendo, por exemplo, que quanto mais a gente sobe na escala acadêmica, mais você sente o racismo, porque quanto mais você sobe, mais branco fica.
O racismo é o sintoma da neurose do Brasil, porque o Brasil é um país racista que nega que é racista
Como se deu a formação do feminismo negro e qual a sua importância na sociedade atual?
Desde que a gente entenda que as sociedades que viveram no processo trágico da escravidão negra, ainda fundamentam a estrutura social alicerçada a partir da raça e gênero, acredito que os movimentos negros e movimentos das mulheres negras conseguem primeiro desnudar a ideia de que a sociedade é racista.
Como diz Lélia Gonzalez, o racismo é o sintoma da neurose do Brasil, porque o Brasil é um país racista que nega que é racista. Quem faz esse movimento que chamamos de letramento racial, é o movimento de mulheres negras e o movimento negro. A gente tem esse passado, tudo que ainda possui uma conotação muito racista, da discriminação racial, tudo está muito embutido. Não adianta a gente ter a mesma renda, morar no Alphaville, por exemplo, ter o vizinho branco, e você está sempre sendo maltratado, fica sempre se sentindo fora daquele lugar, parece que aquele lugar não foi feito para você, apesar de você ter estudado, ter dinheiro, batalhado por aquilo, mas sente como aquilo não fosse para você.
No Brasil, a formação destes movimentos foi importante para dizer que nós somos sujeitos políticos, para dizer que é importante que haja espaço para as mulheres negras, espaços de representação. Se a gente quer reverter um pouco da desigualdade, tem que começar pelas instituições, pelas relações, pelas empresas, porque, quando a gente reconhece que existem grupos sociais, que estão situados de forma diferente na pirâmide social, é preciso que as instituições que queiram avançar coloquem essas mulheres no espaço de poder, nas representações.
O feminismo negro consolida o debate do lugar das mulheres negras, que faz com que a gente tenha um avanço de estímulo para que as meninas negras, a partir do ponto de vista da estética, educação, política, e isso é muito importante. O legado do feminismo negro no Brasil é que hoje temos um corpo de parlamentares que se auto identificam como mulheres negras, que estão na luta na implementação e ampliação de espaços da política partidária legislativa para as mulheres negras.
O feminismo fez com que muitas de nós saíssemos do lugar em que não conseguíamos furar a bolha. Começamos a movimentar o mercado, temos hoje um conjunto de escritoras negras na música, no cinema, no teatro, lugares tradicionalmente ocupados por pessoas brancas. O feminismo negro dá força para que as mulheres negras se articulem, produza e saiam da estereotipação que servem apenas para serviços considerados inferiores e com menos prestígio.
Não conheço tudo em Conquista, mas sei que não há um coletivo que tenha uma grande atuação
No seu artigo “Feminismo negro brasileiro: igualdade, diferença e representação”, você fala sobre o surgimento de coletivos de mulheres negras, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. E aqui em Vitória da Conquista, existe uma representação ou ainda há uma falta de movimentos?
Estou em Conquista desde 2000, há atuação dos movimentos negros na cidade. Eu conheço, mas não sei se ainda está atuando como antes, acredito que estejam mais dispersos, como todo e qualquer movimento. Há a APNS (Associação de Agentes das Pastorais Negros), que são ligadas à igreja católica, um pouquinho do Movimento Negro Unificado (MNU) e o movimento hip-hop da juventude negra. Não conheço um movimento mais específico de mulheres negras na cidade. Os blocos afros tinham uma leitura racial, mas não tinham uma leitura especificamente sobre as mulheres negras. Eu fundei o grupo chamado “Pretas da Dió” com algumas meninas do curso Ciências Sociais e do Mestrado em Educação, que teve uma atuação muito rápida, que visava trabalhar a questão das mulheres negras dentro da universidade.
Não conheço tudo em Conquista, mas sei que não há um coletivo que tenha uma grande atuação no fórum de mulheres da cidade, onde eu sou conselheira do município. O “Pretas da Dió” não tinha intenção de ficar apenas dentro da faculdade, eu tinha como propósito fazer tipo uma monitoria com essas mulheres, porque muitas entram na universidade com algum limite para poder entender o conhecimento sociológico, coincidindo com a entrada de mulheres negras aqui no estado e educação, e acabamos nos associando. Nossa intenção era entender a teoria, entender as questões das mulheres negras e do feminismo negro e sair do ambiente universitário. Fizemos eventos, reuniões e ações, mas muita gente jovem que entra na faculdade vai embora e a causa vai se perdendo. Mas tenho certeza que cada uma delas levou um pouco do início de formação.
O debate acadêmico sobre o feminismo negro chega ao grande público, especialmente em Conquista, interior da Bahia?
O slogan “Suíça baiana” diz muito sobre o que você pensa sobre a cidade e sobre as pessoas que importam na cidade. Em Vitória da Conquista, na universidade (o feminismo negro) não entra. Esse debate existe em Salvador, na UFBA, em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Aqui, dentro da universidade, só eu que discuto.
A gente não precisa só escrever sobre raça, mas precisamos estar nesses lugares
Como trazer esse debate para a universidade e para a sociedade?
É preciso que quem tem interesse nesses cursos, nesses temas, mobilizem os professores de vocês para fazer esse tipo de pesquisa. Conquista não consegue mais não perceber que nós existimos. Todo movimento pode acontecer lá em Salvador, lá em Paris, em Luanda, vai chegando devagar, mas vai chegando em todos os cantos.
Nós vamos também com nosso cabelo, nossas roupas, com o nosso jeito, com os nossos grupos “arrombando” as portas. Agora, do ponto de vista acadêmico, nós precisamos ampliar as pesquisas e ampliar as cotas nas faculdades, porque a gente não precisa só escrever sobre raça, mas precisamos estar nesses lugares. As pessoas precisam se acostumar que nós, negros, apesar de termos um passado de pobreza, não somos todos pobres, miseráveis e periféricos.
Tentem fazer redes com mulheres negras que possam alavancá-las
Qual orientação daria às mulheres negras?
Primeiro, que elas são humanas; segundo, que elas estão sujeitas a falhas e erros, a frustrações, tristezas e alegrias; terceiro, que elas invistam naquilo que elas querem e que tentem fazer redes com mulheres negras que possam alavancá-las.