Os sertões de Caio Resende
Por meio da poesia e do cinema, Caio Resende apresenta ao mundo todos os sertões que carrega dentro de si. 30 de março de 2019 Tamyres LenesCaio Resende, 34, é o nome artístico do poeta, letrista e cineasta, que nasceu em Monteiro, na Paraíba, mas vive em Vitória da Conquista desde os 6 anos de idade. Formou-se em Cinema e Audiovisual na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Uesb (2017) e trabalhou com o cineasta Geraldo Sarno no filme Sertânia e na série Sertão de Dentro. Caio dirigiu propagandas comerciais para televisão, videoclipes e também já atuou como diretor de fotografia, roteirista e apresentou trabalhos em festivais de cinema internacionais como o Cannes Court Métrage, na França.
Atualmente, o artista prepara o lançamento do seu primeiro livro, uma coletânea de poesias intitulada O Outro Lado da Chuva, que acontecerá no dia 04 de Junho, em São Paulo, e tem seu filme – Dois Sertões – em fase de captação de recursos. Em entrevista ao Avoador, Caio Resende conta sobre sua obra e apresenta reflexões sobre arte, política e narrativas cinematográficas.
Avoador: Caio é seu nome artístico. Por que escolheu esse nome?
Caio: Eu nasci Thiago, mas a mudança aconteceu naturalmente. Eu nunca pedi para ninguém me chamar de Caio. Eu escrevia os meus textos e assinava como Caio. Então, a certa altura, eu fui ficando mais conhecido pelos meus textos do que por mim mesmo. Ou seja, me tornaram Caio. A literatura me tornou outro. E é bom que a experiência escritural nos force a esse limiar, porque uma obra só nasce da morte do sujeito.
Avoador: Você seguiu uma formação em Cinema porque gostava de escrever?
Caio: Eu cheguei ao cinema pela escrita, mas não fui para o cinema só porque eu gosto de escrever. Eu percebi muito prematuramente que não iria dar conta da minha subsistência com a literatura; ninguém lê no Brasil, e se tratando de poesia menos ainda. Então, foi um caminho que fiz no sentido de encontrar um trabalho que me desse prazer – um novo campo de expressão – e que pudesse, de alguma maneira, ainda que não tendo esse como foco principal, dar conta da minha subsistência. Hoje, eu estou conseguindo sobreviver e viver de cinema, e isso é uma coisa muito boa. Eu não sei até quando, dada a situação do país. Mas estou trabalhando no sentido de conseguir isso. Eu comecei com a literatura e fui tensionando a minha escrita em outras direções; foi assim com a música, eu comecei a escrever letras de música e aí eu vi que tinha que pensar em outras coisas. E foi a partir desse movimento que cheguei ao roteiro, foi assim que descobri o cinema. Todavia, o roteiro é só um dos departamentos do cinema. O cinema tem essa capacidade aglutinadora: são várias atividades que convergem para que o cinema venha à tona. O cinema, como toda forma de arte, é uma força multitudinária.
O cinema tem essa capacidade aglutinadora: são várias atividades que convergem para que o cinema venha à tona.
Avoador: E o livro O outro lado da chuva? Como surgiu e do que se trata?
Caio: Esse livro é o resultado de um período de formação e o marco inicial de uma trajetória. Tem poemas que foram escritos em diversas épocas. É um livro que, sobretudo, busca investigar o que é a poesia. O que é estar no mundo e ser atravessado pela poesia. E foi a partir dessa questão que o universo do livro foi elaborado. São os encontros, são as experiências que eu fui vivendo, fui percebendo que a poesia era como que uma chama e ao mesmo tempo a lenha para tudo isso. Acho que isso tem muito a ver com o que o André Breton falava, creio que tenha sido algo próximo a isso que o Breton quis dizer quando escreveu que “a poesia é a mais fascinante orgia ao alcance do homem”. Eu passei anos intensos nessa “orgia da existência”, me deixando atravessar por diversas coisas. Então é um livro que vai ter cartas escritas para amigos, mas vai ter poemas que eu escrevi para o Fernando Pessoa, para o Roberto Piva, para o Nietzsche, Spinoza, Picasso… é uma tentativa de entender o que é a escrita e mais especificamente: o que é a escrita diante do mundo, diante de todas as experiências pelas quais nos constituímos.
Avoador: Como profissional, como você enxerga o mercado da literatura e do cinema no Brasil hoje?
Caio: Eu faço uma distinção entre emprego e trabalho. Eu acho que emprego é aquilo que você faz, única e exclusivamente, para pagar suas contas, para dar conta da sua subsistência, mas o trabalho é uma coisa mais profunda. Trabalho é onde você produz a si mesmo e produz a sua realidade, a realidade em volta de você. Então, se você ganhar dinheiro com isso, isso é uma coisa muito boa, mas não pode e não deve ser, ao meu ver, a questão central, eu acho que a coisa é mais como que uma fortuita consequência. Não estou dizendo com isso que os artistas não possam ser pagos. O que quero dizer é que o que move o exercício da arte não é a necessidade de pagar contas, tampouco é uma questão meramente orgânica. Sim, a arte parte de um vitalismo que, em alguma medida, ela também produz, mas não de uma representação orgânica da vida, não é a necessidade de um indivíduo que está em jogo. A arte lida com forças pré-individuais, com forças ancestrais, com devires inauditos. Trata-se de ser atravessado pelas potências inorgânicas da vida, de se conectar com o nosso devir animal, de erigir do nosso silêncio uma multidão inominável, com suas hordas de problemas e de ritmos. Assim, é sempre complicado para mim falar desse lugar de “profissional”, não sei se sou isso. O que sei é que tenho essa inquietude, como uma coceira que se perpetua, que persiste através dos dias. Quanto ao mercado, o que posso dizer? Ele é muitas vezes brutal. E é muitas vezes uma grande mentira. Em relação a ele, eu sou uma espécie de fabulador, minhas questões são outras, são existenciais, meu esforço é o de inventar uma vida e, inclusive, o meu rigor com as ideias e com o meu trabalho passa por isso. Entretanto, às vezes eu finjo esse papel, às vezes finjo que sei do mercado. Com os meus dois pés esquerdos, às vezes, sou obrigado a lidar com ele. Mas não posso negar: os meus problemas, as minhas questões, a bem da verdade, são outras.
Trabalho é onde você produz a si mesmo e produz a sua realidade, a realidade em volta de você.
Avoador: Você já trabalhou com Geraldo Sarno que tem como característica tratar do tema sertão. Essa também vai se tornar uma característica sua?
Caio: Eu sou sertanejo, então, antes mesmo de trabalhar com o Geraldo, o sertão já se caracteriza em mim como uma questão ontológica. Desse modo, posso dizer que o sertão é algo anterior, uma força da minha ancestralidade. Todavia, não posso dar as costas para o olhar de Geraldo, através do olhar dele, digo… através do cinema dele, eu encontrei forças até então insuspeitáveis, e é evidente que isso influencie a qualquer um que esteja minimamente atento. Então esse olhar de vidente do Geraldo me colocou de uma outra maneira diante do meu próprio sertão. O Geraldo acordou um sertão dentro de mim, me fez enxergar com mais nitidez o meu Sertão de Dentro; é aquela coisa que dizia o Guimarães Rosa: “eu carrego um sertão dentro de mim”. Ou seja, é inevitável que, de alguma maneira, isso se expresse, que isso repercuta em minha trajetória. E é por essa experiência que tive o privilégio de viver com o meu amigo que digo o sertão, naturalmente, de uma outra maneira. Não mais com aquela profusão de imagens quase arquetípicas que estrutura os clichês, mas levando em conta uma realidade derivativa, que produz uma imagem de sertão que se afasta da imagem corriqueira e, em alguma medida, estática, que é mais comum ao folclore. A gente está numa cidade com 350 mil habitantes, uma cidade com engarrafamento, Shopping Center, Mc Donald’s, violência. Eu olho esse sertão mais urbano – sou atravessado por ele. Naturalmente isso repercute em meu trabalho, mas de uma maneira singular. Para que o sertão esteja presente não precisa ser conteúdo.
Avoador: Atualmente, a arte corre perigo no Brasil?
Caio: Não, eu acho que a arte não vai acabar, como alguns, talvez por desespero, dizem. Ela existe desde que os homens faziam pinturas nas cavernas, ela faz parte da tessitura do humano, os riscos não se dão dentro desse espectro de fatalismo. O que está acontecendo é que o acesso a isso tende a ser mais difícil, as pessoas tendem, pelo movimento que conduz a política e a sociedade, a cada vez mais verem a arte como algo sem importância. Sim, as políticas culturais tendem a extinção, uma orientação de mercado vem sendo instaurada. Nesse sentido, a arte sofre no país. Mas sempre vão existir cineastas que vão produzir no olho do furacão. A poesia vai continuar sendo produzida, Piva já dizia que “a poesia é minoritária e sempre será minoritária”, ou seja: esse movimento irá sempre existir. Acho que esse, mais do que nunca, é o momento de produzir, é um esforço necessário. Criar é sempre necessário.
Avoador: Como você enxerga a apropriação dos discursos das minorias pela indústria do cinema?
Caio: Acho que a gente tem que ter olhos críticos sobre essas coisas, a gente fica muito atento aos discursos que são reproduzidos pela mídia, mas a gente tem certa desatenção com a linguagem. O como-se-diz é muito importante nessas situações. Eu acho que de pouco vale você reproduzir um discurso que é minoritário se no plano da linguagem você reproduz todos os vícios de uma linguagem e de um modo de subjetivação que serve a um modelo de produção que explora e oprime. Acho que há um certo risco que incide sobre alguns grupos de resistência política, sobre algumas pessoas que não querem necessariamente romper com um modelo de produção, querendo, ao invés disso, quando muito, a inserção dentro de um sistema que necessita, necessariamente, da exploração e da exclusão de muitos para o júbilo de uma minoria que, não devemos nos furtar de dizer, é branca e demasiadamente ocidental. Não que eu ache que essa inclusão não deva existir, as chamadas representatividades. Todavia, é preciso não ser ingênuo. Acho que ela é um fato inegavelmente importante, contudo, quando se trata de uma indústria poderosa como é a do cinema, isso não é feito numa perspectiva humanitária, presando pela igualdade ou pela fraternidade das diversas culturas e raças que compõem o gênero humano. O cinema está entregue à cultura de massa, à cultura do blockbuster, é isso que as famílias, no geral, saem para assistir aos fins de semana. De maneira que esse cinema não traz como preocupação, ao menos em sua maior parte, os modos de ser do homem e da sociedade, não busca traçar nenhuma reflexão profunda sobre a exploração do homem pelo homem. E mesmo quando isso aparece, não se trata de mais que a emergência de um discurso raso, algo conteudista que não explora as potências subversivas da linguagem cinematográfica, ficando no limiar da recognição. Produzindo um certo tipo de experiência muito mais regida pela lei da oferta e da procura – pelo interesse na formação e exploração de novos nichos de consumidores –, do que por uma crítica contundente, pautada num real desejo de transformação, algo que repercuta na linguagem, produzindo uma experiência fílmica singular e reveladora.
Eu acho que de pouco vale você reproduzir um discurso que é minoritário se no plano da linguagem você reproduz todos os vícios de uma linguagem e de um modo de subjetivação que serve a um modelo de produção que explora e oprime
Fotografias: arquivo pessoal de Caio Resende
* A entrevista teve partes editadas para possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do texto.