Deus acima de todos e snipers acima do povo
A inauguração do Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, Bahia, daria um filme de terror 28 de julho de 2019 Jade DiasO clima nublado e frio deu o tom adequado para o filme de terror que estávamos para assistir. Certamente que o cinema brasileiro, talvez não mais após os ataques e censura direcionados à Ancine (Agência Nacional de Cinema), poderia se banhar na narrativa de apocalipse zumbi que Vitória da Conquista, na Bahia, vivenciou na manhã de terça-feira (23/07). A cidade considerada de médio porte, que fica a cerca de 500 km da capital Salvador, mal está acostumada com qualquer tipo de atuação do exército, além dos jovens de olhos cansados que eventualmente são vistos no transporte público, viu surgir um número inquietante de homens fardados portando armas escandalosamente grandes.
Nos pontos mais altos do Aeroporto Glauber Rocha que estava para ser inaugurado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo prefeito Herzem Gusmão, snipers miravam a horda de pessoas que se acumulava em frente a um telão, que repetia o hino nacional incessantemente como que para não tirá-los do transe. Na área interna do aeroporto, onde aconteceria a solenidade oficial e seguindo ordens da presidência, sentados em cadeiras brancas, estavam 600 convidados especiais, entre eles políticos, empresários e personalidades, enquanto o resto da população assistiria a cerimônia na área externa, com chuvosa, e em um grande telão. No roteiro, não faltou pompa para que a classe média alta conquistense, eleitora de Bolsonaro, se sentisse ainda mais privilegiada.
O público, menos valoroso, composto por idosos e homens em sua maioria, arrastavam-se por 500 metros com lentidão até a entrada do aeroporto onde seriam revistados e perderiam seus guarda-chuvas e garrafas de água. A justificativa para abandonarem seus pertences foi a de manter a segurança. A mesma usada para justificar a presença de atiradores de elite com armas apontadas para as suas cabeças. Dentro do local, camisetas com os dizeres “Bolsonaro – Direita raiz” foram distribuídas somente para os primeiros visitantes. A “nova política” é tão velha que o meme mal usado expôs o que estamos todos cansados de repetir.
E foi no mais “raiz” dos métodos que os representantes de direita basearam seus discursos: a religião cristã. A narrativa de filme de terror se intensificou quando Herzem Gusmão iniciou seu discurso afirmando ter ouvido “palavras proféticas” enquanto a multidão gritava “glória a Deus”. Como numa cena das mais horripilantes, o prefeito de Conquista, com uma bíblia nas mãos, chegou a parabenizar o presidente por também ter usado o livro cristão em seu discurso de posse.
Quando Bolsonaro assumiu a palavra, o rugido da horda se tornou ainda mais estrondoso. No ritmo de quem repete um oração fervorosa, a multidão gritava “mito”. Em sua concepção totalitária de poder, Bolsonaro não sentiu constrangimento algum em afirmar que “o estado é laico, mas nós somos cristãos”, como faria o vilão numa tradicional narrativa de terror psicológico. A multidão evangélica entrou em gozo de adoração. O “enviado de Deus”, como se referiu uma das eleitoras presentes, ainda rebatizou a região Nordeste como área paraibana. Repetindo “somos todos paraíbas” e “somos todos cabras da peste”, enfeitiçou o restante da massa adoradora.
Cenas que nem mesmo Glauber Rocha teria imaginado. Ele que dá nome ao aeroporto, que esmiuçou a miséria moral em roteiros como o “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe”, e que não chegou nem a ser citado durante a inauguração. A filha do cineasta se recusou a comparecer neste espetáculo em que não houve, literalmente, espaço para oposição. Se estivesse vivo, será que seu pai, de personalidade forte, crítico, libertário, teria sido convidado? Teria Glauber Rocha sentado nas cadeiras brancas e assistido a decadência da política brasileira?
* Jade Dias é estudante do 7º semestre do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
Foto de capa: Jade Dias
Só tenho a parabenizar o site e o texto. Conquista precisava de um espaço para uma escrita crítica, reflexiva.