“Lei anti-Oruam”: Conquista implementa lei considerada contra a cultura periférica

Em Conquista, a lei foi proposta pelo vereador Edivaldo Ferreira Junior (PSDB) e aprovada na Câmara de Vereadores de Vitória Conquista em 26 de março 4 de junho de 2025 Lavínia Marinho e Vanessa Sena*

Desde 22 de abril, está em vigor em Vitória da Conquista a lei que regulamenta shows, artistas e eventos abertos ao público infanto-juvenil contra expressões de apologia ao crime organizado e ao uso de drogas ilícitas. A norma, que ficou conhecida nacionalmente como “Lei anti-Oruam”, é semelhante a outras cinco aprovadas nas capitais Campo Grande (MS), Maceió (AL), Cuiabá (MT), Porto Velho (RO), Vitória (ES) e em tramitação em outras sete : São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), João Pessoa (PA), Goiana (GO), Porto Alegre (RS), e Natal (RN), Manaus (AM).

Em Conquista, a lei foi proposta pelo vereador Edivaldo Ferreira Junior (PSDB) e aprovada na Câmara de Vereadores de Vitória Conquista em 26 de março. Foi enviada à prefeita, Sheila Lemos, que sancionou a nova norma, tendo sido publicada no Diário Oficial do município no final de abril. De acordo com o parlamentar, a lei foi criada para combater o incentivo à criminalidade em músicas, o financiamento desse tipo de shows com recursos públicos, tendo como foco proteger crianças e adolescentes do crime organizado e do uso de drogas. “Esse projeto de lei surgiu a partir da iniciativa da vereadora Amanda Vitorazzo, da cidade de São Paulo. De lá para cá, o projeto já foi apresentado em mais de 50 municípios país afora. Aqui, esse projeto de lei nos foi apresentado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), e assim que nos foi apresentada essa minuta, de imediato apresentamos o projeto de lei na Câmara de Vereadores”, explicou. “Defendemos a questão da proteção das crianças e dos adolescentes, e acreditamos que esse projeto de lei que hoje é uma lei, vai contribuir para a nossa cidade, visando sobretudo a proteção das crianças e dos adolescentes.”

A lei foi proposta pelo vereador Edivaldo Ferreira Junior (PSDB) e aprovada na Câmara de Vereadores de Vitória Conquista em 26 de março. Foto: arquivo pessoal

A iniciativa foi inspirada em um projeto apresentado à Câmara de Vereadores de São Paulo pela parlamentar Amanda Vettorazzo (União Brasil) em 21 de janeiro de 2025. A paulistana criou o site chamado “Lei Anti-Oruam” e, em vídeos nas redes sociais, ampliou a visibilidade da proposta contra artistas de rap, tendo como foco um artista em especial. “Quero proibir o Oruam de fazer shows em São Paulo. Chega de cantores de funk e rap fazendo apologia explícita ao crime organizado. Facções são inimigas e devem ser tratadas como tal. Em São Paulo, não”, disse. No interior do estado de São Paulo, a lei foi aprovada em 2 fevereiro de 2025, no município de Cruzeiro, tornando-se a primeira cidade brasileira a aderir à lei. 

A partir da menção ao artista realizada pela vereadora  Amanda Vettorazzo (União Brasil) , o projeto recebeu o apelido de “Lei anti-Oruam”, que é uma  referência  direta ao cantor de rap Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, filho de Marcinho VP, líder da facção criminosa Comando Vermelho, que é conhecido no Brasil por Oruam. É dele uma das músicas que já foi a mais ouvida no país no Spotify, “Oh Garota Eu Quero Você Só Pra Mim”. Também foi o rapper que protagonizou uma polêmica no Lollapalooza de 2024, ao pedir liberdade a seu pai, que está preso desde 1996 sob acusação de ser líder da organização criminosa Comando Vermelho. Também existem acusações contra ele de fazer incitações ao crime e a uso de drogas em suas músicas. Por outro lado, o rapper tem recebido destaque internacional, ao estampar a capa da revista britânica Dazed e aparecer em vídeos de divulgação da publicação nas redes sociais, neste mês de junho.

Na lei, que já está em vigor em Conquista,  as  contratações  de  shows,  artistas  ou  eventos  de  qualquer natureza  realizados pela Prefeitura, que sejam voltados ao público infanto-juvenil, não devem  ter expressões do que é considerado  de  apologia  ao  crime  e  ao  uso  de  drogas  ilícitas.  Em caso de descumprimento, o contratado sofrerá a imediata rescisão do contrato, sanções contratuais e multa no valor de 100% do valor do cache, que será destinada ao Ensino Fundamental da Rede Municipal da cidade.  

As denúncias poderão ser realizadas por qualquer pessoa, entidade ou órgão da Administração Pública por meio da Ouvidoria municipal. O auto de infração e imposição de multa descrito poderão ser feitos por órgão da Prefeitura de Conquista, como a Guarda Municipal ou a Polícia Militar, desde que haja um convênio com a gestão municipal. 

A Equipe do Avoador entrou em contato com a Secretaria de Comunicação da Prefeitura há duas semanas, para saber o porquê da prefeita de Conquista, Sheila Lemos, sancionar uma lei que é identificada por especialistas e artistas e moradores como discriminatória aos gêneros musicais vindos da periferia. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta.

“Lei anti-Oruam”: censura e preconceito  

Conquista, que é a terceira maior cidade da Bahia, tem festas tradicionais que atraem públicos de outras regiões da Bahia e de outros estados. Entre elas, Arraiá da Conquista e o Suiça Baiana, que têm financiamento público, e os privados como Festival de Inverno, Revoada do 01 e Level 5, que em 2024 trouxeram os Mc PH, Mc Paiva, Mc IG e Mc Hariel, que são artistas do funk e do rap.

Para o empresário e artista,  Robson Soares, mais conhecido como Robinho, que promoveu no ano de 2024 a Revoada do 01 e o Level 5 em Conquista, há um preconceito contra o funk e o rap, que são gêneros musicais marginalizados pela sociedade. “Eu, que faço festas de trap, funk, levanto essa bandeira, trago vários artistas do estilo de Oruam, então as pessoas vão banalizar e diminuir o nosso trabalho. Até antes dessa lei, quando a gente fala que traz artistas de trap, funk, a galera já olha de um jeito diferente”, desabafou.

Os dois eventos organizados por Robinho, realizados nos últimos dois anos, atraíram especialmente o público jovem. Foi o caso do estudante de psicologia, Pedro Melo, de 18 anos: “Gostei demais! Foi um espetáculo de descontração e lazer, assim como diversos shows de outros artistas”, disse. “Devemos entender que as músicas dos cantores não te influenciam de maneira ruim, do contrário, abriu minha mente sobre o tipo de cultura que o cantor quis passar com certeza naquele dia virei um grande fã do MC PH”.

O professor do curso de Ciências Sociais, o sociólogo Dener Silveira,  explicou o quanto as manifestações culturais são dinâmicas ao longa da história e retratam as expressões culturais de uma determinada população. “Iniciativas de produção de cultura, como o funk, tem um grande potencial de análise de sociedade, uma vez que permitem compreender os anseios e desejos de um perfil de juventude completamente desassistida de condições de reconhecimento. As experiências da juventude negra e suas produções culturais são uma forma de apresentar ao mundo sua complexa rede de significações subjetivas.”

O professor do curso de Ciências Sociais, o sociólogo Dener Silveira,  explicou o quanto as manifestações culturais são dinâmicas ao longa da história e retratam as expressões culturais de uma determinada população.. Foto: arquivo pessoal

Para Dener, a legislação que tem sido replicada pelo país, como a nova lei municipal de Conquista, é sem fundamento por já existirem legislações que tratam desses assuntos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as leis que falam sobre apologia ao crime, além de conservadora e uma forma de censurar a cultura periférica. “A censura aqui visa à desidratação de manifestações negras e periféricas. Mas devemos entender que a legislação brasileira, a partir da lei 11.343/2006, chamada lei anti-drogas é um retrocesso e mostra o potencial conservador e opressor brasileiro para tratar do tema. Com aprovação dessa lei que regulamentou a posse de entorpecentes, produziu-se um encarceramento em massa, em especial de jovens negros, pois a seletividade nas prisões e os privilégios de alguns grupos reproduziu as marcas estruturais do racismo no Brasil. E a lei Anti-Oruam é uma legislação ineficaz pela sua formulação e mostra nitidamente uma perseguição contra a cultura periférica. É uma perseguição cultural com alto viés moralista.”  

Já o autor da lei municipal, o vereador Edivaldo Ferreira, defende a nova norma. “Não vejo como a lei possa ser interpretada como censura à liberdade artística, porque, acima da liberdade artística, todo cidadão deve obedecer ao ordenamento jurídico, e apologia ao crime está no Código Penal. Então, o que nós estamos fazendo é simplesmente regulamentar essa questão em nível municipal”, argumentou.

O professor do curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), José Carlos Melo Miranda, a partir de uma análise jurídica, disse que a lei não fere nenhum ordenamento constitucional, como a liberdade de expressão e a artística. Segundo ele, o estado democrático de Direito tem como um dos princípios mais importantes assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes. “Devemos ter em mente que o objeto da lei não é censurar determinado artista ou gênero musical, mas sim, repito, proteger as nossas crianças e adolescentes.”

Comunidade periférica 

Relatório de 2021 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) coloca o Brasil em 10º lugar no ranking de desigualdade social. Segundo o Censo de 2022, havia no Brasil 12.348 favelas e comunidades urbanas onde viviam 16.390.815, sendo 8,1 % da população. Desse número, 56,8% era composto por pardos e 16,1% eram de negros.

Para a presidente da associação VDC Hip Hop e do Conselho de Igualdade Racial, a DJ, graduada em Direito e Ciências Sociais, Nana Aquino, existe a necessidade da criação de políticas públicas para a comunidade periférica. “É preciso conscientizar a população para combater a violência, e o poder público deve atuar nas causas estruturais dessa violência, promovendo políticas públicas de educação, cultura, cidadania, lazer e inclusão”, disse. 

Nana Aquino ainda destacou  a relevância de existirem projetos para promover e valorizar a cultura negra,  que representa 55,5% da população brasileira, segundo o Censo de 2022,. “É importante também que se amplie o número de editais, para abarcar as culturas urbanas, como batalhas de rap, bailes funk, slams poesia, festas de bairro, inclusive investindo em espaços culturais e lazer dentro das periferias”, disse.   

De acordo com o professor Dener Silveira, as manifestações culturais são dinâmicas ao longa da história e que há nas culturais periféricas um o potencial revolucionário, mas falta a valorização do estado brasileiro. “Entendo que o movimento cultural de distintas ordens, não costuma ter no horizonte a esperança de que politicas culturais governamentais darão espaço privilegiado para suas manifestações. O entendimento de politicas de cultura por parte do Estado e seus governos, com raras exceções, veem a cultura apenas como entretenimento, quando ela é muito mais importante do que isso”, ressaltou.

Prisão do Mc Poze 

Nesta última segunda-feira (02/07), o cantor de funk Marlon Brendon Coelho Couto Silva, mais conhecido como Mc Poze do Rodo, teve sua prisão revogada pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Peterson Barroso. A alegação para a libertar o artista pelo desembargador foi de que a Lei foi excessiva e que o alvo da prisão não deveria ser o mais fraco. “Aqueles que levam fortuna do INSS contra idosos ficam tranquilos por nada acontecer e, ao mesmo tempo, prende-se um jovem que trabalha cantando e ganhando seu pão de cada dia.  Tais extremos não combinam”, disse.

Mc Poze do Rodo havia sido preso, no dia 29 de maio,  em sua casa localizada no Bairro Recreio, zona oeste do Rio de Janeiro. Ele foi acusado de apologia ao crime organizado. Em vídeos divulgados na internet, o funkeiro aparece algemado pela Polícia Civil  com as mãos para trás, sem camisa e e chinelo, o que causou revolta nas redes sociais. A esposa do cantor, Viviane Noronha,  em publicação nas redes sociais, disse que a abordagem fugiu do controle.  “A polícia do estado do Rio de Janeiro hoje foi usada mais uma vez como um instrumento de perseguição e censura, é a institucionalização do racismo e do preconceito. Mas vocês não vão me calar.”

A nota publicada no perfil do funkeiro nas redes sociais  ressaltou o quando a prisão foi violenta e racista. “Nesse contexto, (a prisão) é na realidade a criminalização da arte periférica, uma perseguição, mais um episódio de racismo e preconceito institucional. Foi uma forma absurda que o Poze foi conduzido é a maior prova disso.”

Segundo o secretário Estadual de Polícia Civil do Rio de Janeiro, o delegado Felipe Curi, entrevista ao G1, as músicas do Mc seriam um “instrumento de dominação, de divulgação e de disseminação da ideologia e da narcocultura do Comando Vermelho”. Para ele, o crime organizado tem se utilizado de meios informacionais para criar uma falsa narrativa de exemplo para a comunidade e virar uma necessidade social. 

O cantor Oruam saiu em defesa de Marlon Brendon, em suas redes sociais. “Hoje, eles prenderam o Poze, amanhã eles vão prender o Oruam. Ontem, eles prenderam o MC Smith, Tikão, o Max.  Se tirar o Poze, o Oruam, o Smith, o Tikão, o crime ainda vai ter (sic), disse.

Lei em Salvador

Na capital baiana, Salvador, existe uma lei semelhante a lei Anti-Oruam desde 2 de agosto de 2019, que foi sancionada durante o mandato do prefeito ACM Neto (União Brasil), que à época era do partido Democratas (DEM).  A Lei N° 9.472/2019 proíbe a veiculação de músicas que desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres à situação de constrangimento, ou contenham manifestações de preconceito de qualquer espécie, ou apologia ao uso de drogas ilícitas ou cometimentos de crimes em escolas e creches municipais e nas suas proximidades. Quem descumprir a norma, pode pagar multa entre R$50,00 a R$100.000,00.

*Alunas do curso de Jornalismo da Uesb e voluntárias do Programa de Extensão Jornalismo de Transformação – Coordenado pela profa Carmen Carvalho

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