Boa Vista: entre o mundo fechado dos condomínios e o isolamento do loteamento Vila América

As duas realidades diferentes em um mesmo bairro escancaram uma brutal desigualdade social que gera segregação no espaço urbano 4 de outubro de 2021 Gabriela Souza

Ruas desérticas e muros longos que muitas vezes seguem por quase toda a extensão de ruas e avenidas. Quem passa despercebido por essa região pode não notar que os grandes empreendimentos de condomínios fechados causam uma segregação territorial urbana e econômica. Esse é o cenário comum e habitual para milhares de pessoas, em especial para os moradores do bairro Boa Vista, em Vitória da Conquista.  

Localizado na zona Sul do município baiano, o bairro passou por um processo de desenvolvimento estrutural com a construção dos primeiros condomínios por volta de 2007. Na lista dos primeiros empreendimentos estão os condomínios de classe média Vila dos Pinheiros e Green Ville. Em contraponto com a área mais murada do Boa Vista está o loteamento Vila América, região mais popular do bairro.

Considerado afastado do Centro de Conquista até pouco mais de 14 anos atrás, os terrenos no Boa Vista eram tidos como relativamente baratos se comparados a outros bairros da cidade, tornando-se um negócio promissor para as construtoras que procuravam grandes terrenos a baixo custo. Pelas características da zona ser plana e repleta de condomínios de casas e apartamentos, o Boa Vista é um dos bairros mais valorizados no quesito imobiliário em Conquista, com uma população estimada em 9.773, conforme o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).          

Segundo o professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e residente do Boa Vista há 13 anos, Dannilo Duarte, o bairro é bem localizado e não apresenta problemas relacionados ao abastecimento de água. Além disso, as ruas são pavimentadas e possuem uma grande oferta de serviços, como mercados, cabeleireiros, padarias, pet shop e outros. 

Além dessa estrutura oferecida pelo Boa Vista, uma das principais motivações que os condôminos do bairro procuram é a segurança. Como O Rappa já cantava no final da década de 90, “as grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que ‘tá’ nessa prisão”, já que a segurança privada está do lado de dentro dos muros. E quem caminha pelas ruas, ao lado dos muros, não tem segurança nenhuma.  

Avenida José Fernandes Pedral Sampaio.  Vídeo: Gabriela Souza 

Dannilo, que também é síndico do condomínio vertical Vog Jardins, diz se sentir seguro dentro e fora da sua moradia. “Caminho pelo bairro, visito o Vila América, faço uso do comércio local, porque eu acho muito importante o desenvolvimento do comércio local. É um bairro que eu sempre andei a pé ou de carro, existe ocorrência, é claro, mas são muito raras, no meu ponto de vista.”   

Já Fernanda Ferreira, moradora do Vila América há 12 anos, relata que não se sente segura para caminhar pelo bairro devido à “fama de periculosidade” e que há quatro anos foi assaltada ao sair de casa. Apesar disso, ela considera que houve uma redução na violência do bairro.     

O morador do Boa Vista é heterogêneo, com pessoas de diferentes classes sociais. Dentro do bairro existem condomínios para distintos contas bancárias, dos mais populares até os condomínios de alto padrão como o Bosque dos Pinheiros e Villa Constanza. Para quem escolhe ser um condômino, a primeira atração é a segurança e, em seguida, o lazer.   

Segundo a imobiliária digital QuintoAndar, a procura por casas em condomínios no Brasil cresceu em 15% no segundo trimestre de 2020, em comparação com o primeiro trimestre do ano, quando começou a pandemia da covid-19. A pesquisa feita com exclusividade para o jornal O Estado de S. Paulo, somente na capital paulista, as buscas por essas residências em ambiente fechado aumentaram em 20% com o início da pandemia. Grande parte dessa procura está relacionada aos atrativos oferecidos por esses condomínios, como espaço de lazer e alguns serviços exclusivos, a exemplo de academias e salão de festa.

Quando Tâmara Oliveira decidiu morar em um condomínio no Boa Vista, buscou a praticidade oferecida por essas residências, como segurança de uma portaria, brinquedoteca para as crianças e salão de festa, um tipo lazer que não seria possível em uma moradia fora do condomínio. “Em casa, a gente não tem como fazer quando o espaço não é grande, então foi mais pensando na parte de lazer e segurança.” O perfil dos vizinhos do edifício onde mora é de  famílias com até dois filhos e pessoas com idade mais avançada para um apartamento de dois quartos.

Para o professor e Engenheiro Agrônomo, Ednei Pires, morador do Boa Vista há quatro anos, muitas pessoas procuraram por moradias nesse bairro devido aos programas de financiamento imobiliário, a exemplo do Minha Casa Minha Vida. “Um apartamento sai mais barato do que uma casa, então se enquadra melhor nesses programas. É a oportunidade que alguém de classe média baixa tem de morar em um bairro bom.” De acordo com a Prefeitura de Conquista, o programa já entregou mais de 22 condomínios no município, totalizando mais de 8,2 residências. 

“O Boa Vista é um bairro bem centralizado e localizado, por isso muitas pessoas querem morar aqui, devido à tranquilidade e o fácil acesso a muitas localidades da cidade”, diz Tâmara Oliveira

A presença desses condomínios ampliou o desenvolvimento da estrutura no Boa Vista. Conforme consta na Lei Nº 1481/2007, presente no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Conquista, as construtoras são responsáveis pela pavimentação, rede de esgoto e toda a infraestrutura necessária para o empreendimento em construção. Segundo Tâmara, quando foi morar no condomínio, a rua ainda não era pavimentada e a presença de grandes terrenos eram constantes, inclusive, nas localidades da Terceira Avenida Boa Vista e Avenida Guanabara ainda é possível ver alguns lotes. O número de condomínios influenciou positivamente na infraestrutura do Boa Vista porque muitas ruas foram calçadas e iluminadas, em contraponto, algumas regiões do bairro ainda carecem de pavimentação. “Observando o crescimento do bairro com o tempo, as melhorias feitas pelas construtoras e exigências da população do Boa Vista, a Prefeitura começou a investir mais no bairro.”   

Quem pode, paga por segurança

Conquista tem um aspecto peculiar: a cultura dos muros altos. Ao caminhar pela cidade é possível ver que um número considerável das casas são muradas e, no Boa Vista, não é diferente. No entanto, os muros dos grandes empreendimentos imobiliários ocupam vários metros de altura e extensão. Em algumas áreas do bairro, o muro de um condomínio se encontra com outro e formam um grande paredão dos dois lados da rua.

As paredes que separam os condôminos dos outros moradores do Boa Vista e das pessoas que passam pelas ruas do bairro mostram uma sociedade segregada. Quem entra nesses conjuntos residenciais, não vê o que acontece do lado de fora do muro, além de ter quase tudo o que precisa nesse ambiente, como  moradia, lazer e segurança. O quesito segurança que deveria ser um direito de todos, acaba sendo privada para os que podem pagar por ela.     

Dannilo Duarte relata que o Boa Vista é um bairro grande, com ruas longas, mas que carece da presença policial. “Só na entrada da Gilenilda Alves que tem um módulo da Polícia e, no meu ponto de vista, esse módulo está no lugar errado, ele deveria estar na parte mais populosa, que seria na Capela da Irmã Dulce ou no Vila América, onde tem uma maior circulação de pessoas.”    

O arquiteto, geógrafo e morador do Boa Vista, Mário Rubem Santana, considera que a presença de pessoas nas ruas gera segurança para os indivíduos, porque a tendência de alguém se sentir mais seguro em uma rua movimentada é maior do que em uma deserta. Ele destaca ainda que, com as estruturas de condomínios, a rua perde o papel integrador da cidade e deixa de ser vivida, tornando-se apenas uma área de passagem. “O Estado não vai conseguir manter a segurança das pessoas somente com patrulhamento, pois é necessário uma mudança urbanística.”   

Os condomínios fechados contribuem para o processo de separação da população, seja entre os próprios condôminos de diferentes classes sociais, como para as pessoas de fora desse ciclo. Essas ilhas de segurança e lazer retiram as pessoas da rua e promovem a morte dela. Outro ponto que o geógrafo aponta como divisor são os carros: “você entra no seu carro, sai do condomínio, vai para o shopping center e depois volta para a sua casa. E o que tem no meio do caminho? Pouco importa”.      

Na produção desta reportagem, a repórter acompanhou a movimentação de um trecho da Avenida Laura Nunes e constatou que a quantidade de pessoas que passam por essa localidade, a pé ou em bicicletas, é inferior aos que estão dentro de carros. E, a partir das 19h, a avenida fica quase deserta, sendo possível ver apenas alguns veículos, principalmente de entregadores de aplicativo. 

Nesse trecho da Avenida Laura Nunes, durante à noite, às 20h08, fluxo de pedestres é quase mínimo. Foto: Gabriela Souza

Para os moradores do Boa Vista que não têm automóveis, deslocar-se do bairro para outras localidades pode ser complicado, há quantidade  escassa de linhas disponíveis. Quem está no Centro da cidade e vai para o Boa Vista, por exemplo, pode pegar o ônibus R18 ou R23, esse último com itinerário para o Vila América. 

Além da trajetória para o Centro, antes da pandemia também era ofertada a linha P54, da Urbis VI, com destino a Uesb, mas essa rota está temporariamente suspensa, e quem precisa se deslocar para essa parte de Conquista tem que pegar dois transportes. 

Outro problema enfrentado pelos moradores é a demora dos ônibus. A pessoa que perde o coletivo precisa esperar quase uma hora até chegar o próximo, sendo o tempo de espera entre 40 a 50 minutos. Fernanda Ferreira relata que antes da crise do transporte público, em 2018, também tinha disponível a linha P53, com itinerário para as Vilas Serranas, mas com a saída da empresa que oferecia esse serviço, a linha não foi retomada. 

“A gente foi questionar para ver como ia ser. Teve até por um tempo, por uns seis meses com a empresa Cidade Verde. Antes o ônibus lotava porque era muita criança, mas com o passar do tempo, elas foram se formando, mudando de escola e tiraram por isso, mas faz muita falta”, comenta.     

Fernanda mora no Vila América há 12 anos. Foto: Arquivo pessoal

A falta desse transporte coletivo está diretamente relacionada à desigualdade social, uma vez que a presença desses condomínios no Boa Vista tornou o bairro um espaço habitacional para a classe média de Conquista, que são pessoas que têm veículos de transporte particular e não usam o serviço de transporte coletivo.    

Na estética do Boa Vista, é possível observar as diferentes camadas sociais, principalmente na região de fronteira com o Vila América. Entre a Avenida José Fernandes Pedral Sampaio e a Rua Diogo Álvares Carneiro, por exemplo, existe um grande abismo. Enquanto a primeira é pavimentada e repleta de condomínios, a outra, não é asfaltada e está cheia de entulhos. Além da falta de pavimentação, essa região é rodeada pelos muros de dois condomínios, onde falta iluminação pública, o que gera insegurança por quem caminha pelo local. 

Problema entre esgoto de condomínio e o Vila América

Conforme o líder comunitário do Vila América, Moisés da Silva Santos, conhecido popularmente como Dida, o esgoto do condomínio Cidade das Flores, da Pel Construtora e Incorporadora, é conjugado com o do Vila América, na Rua Diogo Álvares Carneiro, o que ocasiona vazamento do poço de visita (PV), na Avenida João Cândido, e tem prejudicado os moradores do loteamento.    

 

Poço de visita que recebe o escoamento do condomínio Cidade das Flores. Foto: Gabriela Souza

 

Poço de visita na Avenida João Cândido que extravasa regularmente. Foto: Gabriela Souza

Em nota, a Pel informou que a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) é a responsável pelo direcionamento e por escolher em qual PV o esgoto será lançado. Também é de responsabilidade da Embasa a fiscalização e acompanhamento dos serviços. A Pel ainda afirma que a obra da rede de esgoto foi feita pela construtora, mas, como em todos os casos, foi doada à Embasa. Nessa doação, a empresa baiana passa a ser a única dona e responsável pela manutenção.       

De acordo com a Embasa, o extravasamento do PV acontece devido ao uso inadequado do sistema de esgoto, como, por exemplo, o lançamento indevido de lixo, gordura e areia. A empresa também diz que, quando é acionada para resolver esse problema, atua imediatamente na limpeza da rede de esgoto existente na Rua Diogo Álvares Carneiro.     

Um bairro, duas realidades 

Com a presença dos condomínios no Boa Vista, o loteamento Vila América também passou a ser mais valorizado. Hoje, grande parte dessa área já é pavimentada e recebe infraestrutura da Prefeitura. Há também a construção de um novo local para feira de produtos hortigranjeiro, com calçadão, estacionamento, área de carga e descarga de mercadorias e banheiros. Essa obra que recebeu investimento de 700 mil, é uma parceria entre a administração municipal e a empresa VCA Construtora. A previsão de entrega é em outubro deste ano.   

Apesar dessa infraestrutura, o loteamento não possui espaço de lazer atrativo para os moradores. De acordo com Dida, a localidade possui 14 praças, mas nenhuma delas têm estrutura para atender à população. “Você não tem uma praça para as crianças se divertirem”. Fernanda Ferreira acrescenta ainda que, os moradores não frequentam essas praças por medo de sofrer alguma violência e que esses espaços não são cuidados pela Prefeitura. Para atividades de lazer, os moradores se dividem entre a grande quantidade de igrejas e bares, que muitas vezes são colados um no outro. No Boa Vista como um todo, os espaços públicos de lazer são escassos e ficam restritos aos moradores de condomínios fechados. 

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De acordo com o arquiteto e urbanista, Renisson Veloso, o condomínio é um espaço exclusivo, que exclui o acesso de pessoas que não residem naquele ambiente. Em contraponto, os condôminos podem circular por todas as áreas do bairro, mas para quem mora fora dos muros, essa mesma vivência não é possível. Além disso, a estética da localidade fica prejudicada porque nesses espaços é possível observar quase que na totalidade somente carros, muros e avenidas. 

Os muros também estão presentes em muitas casas do Vila América. Em alguns pontos, por exemplo, todas as residências são muradas e possuem portões de ferro. E, até nessa parte mais popular do Boa Vista, existe desigualdade social entre os padrões de moradias, algumas residências possuem mais estrutura e segurança do que outras. 

Fernanda Ferreira relata que a iluminação adequada é mais uma necessidade para o loteamento, já que os postes nem sempre funcionam e, em alguns momentos, ficam ligados durante o dia e apagados à noite. A iluminação pública está mais presente nas ruas principais, o que gera insegurança e provoca o esvaziamento da rua. Outro ponto é a falta de policiamento na localidade. A polícia só passa em eventos especiais, como na busca de algum suspeito, por exemplo.   

Um retrato escancarado da desigualdade pode ser visto no entorno do Green Ville, na Avenida Vladimir Herzog. De um lado do muro está um dos condomínios mais conhecidos de Conquista, um dos primeiros do Boa Vista e, do outro lado, uma grande quantidade de lixo, com algumas pessoas coletando esse material e pedindo esmolas.          

Sobre a grande quantidade de condomínios, Renisson Veloso diz que “existe porque de um lado estão empresas e proprietários de terras que visam o lucro, e do outro, é a ausência de políticas públicas que controlem esse tipo de empreendimento”. O arquiteto e urbanista ainda afirma que, pode ter condomínios, mas também deveria haver bairros sem essas estruturas, com o mesmo nível de investimento e qualidade.   

O fenômeno dos condomínios convertem as cidades brasileiras em inseguras, com ruas que deveriam ser movimentadas e são grandes áreas muradas, cheias de concreto e sem vida,  e boa parte das pessoas que passam por esses locais estão dentro de carros. Essa estrutura separatista também propicia o aumento da violência. Em grandes centros urbanos, por exemplo, muitas pessoas são furtados ou roubados nas redondezas do empreendimentos imobiliários.    

A presença de condomínios em um bairro implica diretamente na valorização do solo e contribui para o aumento dos preços imobiliários na área. Mário Rubem Santana afirma que alguns condomínios verticais na Avenida Gilenilda Alves custam mais de um milhão de reais.

O Boa Vista é um dos bairros mais valorizados de Conquista, com moradias de alto padrão, de preço elevado e residências simples. A distância que separa essas duas realidades está além dos longos muros, escancaram a desigualdade social do Brasil. 

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