Cônjuges ou namorados são autores de um a cada oito estupros de mulheres no Brasil

Entre 2011 e 2022, o país registrou um total de 350 mil agressões sexuais contra mulheres. Em 42,5 mil casos, o autor era o cônjuge ou namorado da vítima 11 de dezembro de 2023 Adriana Amâncio

Há 17 anos, a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, tipificou as formas de violência de gênero. Considerada um avanço por romper as paredes físicas e culturais que silenciavam agressões exercidas no espaço doméstico, a lei ainda não rompeu uma fronteira: a do quarto, onde estupros maritais ocorrem sem que muitas se deem conta de que são vítimas de um crime ou, quando criam essa consciência, tenham condições de denunciar.

O estupro marital consiste em forçar a prática sexual em um relacionamento afetivo, seja namoro, união estável ou casamento. Se a vítima disser não ou estiver sem condições de consentir – dormindo, sob efeito de álcool ou medicamentos – e o parceiro persistir, está caracterizado o crime.

Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), disponíveis no Mapa Nacional da Violência de Gênero, mostram que, entre 2011 e 2022, o Brasil registrou um total de 350 mil agressões sexuais contra mulheres. Em 42,5 mil casos – um de cada oito -, o autor era o cônjuge ou namorado da vítima.

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Essa violência tem um forte componente racial: 66% das mulheres vítimas de violência sexual praticada por cônjuges ou namorados são negras. Elas também são maioria entre as vítimas de agressão sexual praticada por outras pessoas e respondem por 54% desses registros.

Mas os dados ainda estão longe de refletir, de fato, o problema do estupro marital no Brasil. As barreiras que impedem as mulheres de reconhecerem que são vítimas e terem condições de denunciar – e a própria forma de enquadramento do crime na lei – fazem com que esse crime, além de invisível, siga impune.

Segundo Isabela Del Monde, advogada, coordenadora da Campanha MeToo no Brasil e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, as razões que impedem o reconhecimento e a denúncia do estupro marital são de ordem cultural e estrutural.

“Há a cultura que naturaliza a ideia de que a mulher tem obrigação de satisfazer o marido sexualmente, a dependência emocional ou econômica e a falta de uma rede que, além de receber a denúncia, ofereça apoio emocional e econômico para que essa mulher construa a sua vida longe da relação violenta”

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A agricultora alagoana Bárbara*, de 34 anos, é mãe de dois filhos e, por muito tempo, criou outros dois filhos do seu último companheiro, com quem se casou, aos 18 anos, e conviveu por 11 anos. Ela aceitou conversar com a nossa reportagem, mas minutos antes da entrevista recuou. Enviou a seguinte mensagem: “eu estou bem agora, para que relembrar o passado?”. Depois de alguns minutos de silêncio, ela aceitou contar sua história.

Depois de três anos de casamento, ao descobrir que o marido a traía, o interesse sexual de Bárbara pelo parceiro diminuiu. “Ele bebia muito, saía com outras mulheres e me procurava de noite, quando chegava em casa. Eu dizia que estava triste com as traições e não queria [fazer sexo]. Ele começava a dizer que eu não queria porque eu estava com outro e começava a me bater. Aí eu fazia. Quando terminava, eu sentia nojo”, relata a agricultora, com falas entrecortadas por suspiros profundos.

Bárbara trabalhava, mas não ganhava o suficiente para  sustentar a si e às crianças. Também não tinha onde morar, razão pela qual permaneceu, por anos, nessa relação abusiva. Sem alternativa, ela resignou-se e passou a satisfazer sexualmente o marido, mesmo contra a própria vontade, com medo de perder o esteio da casa.

“Eu pensava: eu sou mulher dele, satisfazendo ele em casa, ele não vai mais procurar mulher fora. Então, mesmo sem vontade, eu deitava com ele”

Um dia, Bárbara acordou sentindo algo gelado no pescoço. Ao abrir os olhos, viu que o marido empunhava uma faca sobre a sua garganta. As ameaças armadas não pararam. Em uma segunda investida, ela foi acordada com uma arma apontada para a sua cabeça.

“Aí eu fiquei com medo e falei com a minha mãe e com algumas amigas. Um grupo de mulheres me chamou para reuniões, foi me dando força. A minha mãe e o meu irmão me ajudaram, alugando um lugar seguro, comprando comida pra mim, e eu deixei ele”, recorda. “Enquanto ele só me batia, eu estava levando, mas quando ele passou a me ameaçar com arma, tive medo e achei que pudesse acordar morta qualquer dia”

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Isabela Del Monde explica que o crime sexual tem a ver com subjugação da mulher. A engrenagem que atribuiu ao homem o papel de mandar e à mulher o de servir surge na transição do feudalismo para o capitalismo, quando ocorreu nas sociedades ocidentais a divisão sexual do trabalho. Naquele momento, os homens passam a ir para o mundo e as mulheres ficam reduzidas ao espaço doméstico, aos cuidados com a casa e os filhos.

“Tem raízes muito antigas a ideia de que ao homem é garantido tudo aquilo que ele deseja e que a mulher deve servir ao homem tudo aquilo que ele deseja”, complementa a advogada.

Isabela explica que essa naturalização ainda se faz presente entre profissionais da rede de atendimento. Isso faz com que muitos desencorajem as vítimas a efetivar a denúncia ou as revitimizem ou não caracterizem o estupro marital no registro.

Frases do tipo “o seu marido fez isso, mas é um bom pai” ou “qual o homem que nunca fez isso no casamento?’ são exemplos da revitimização que acontece justamente onde as mulheres deveriam encontrar acolhimento.

“As mulheres têm medo de realizar a denúncia e serem responsabilizadas pela violência sofrida ou naturalizada, como algo que simplesmente acontece dentro do casamento”, reforça Isabela.

Muitas mulheres veem o casamento e a construção de uma família como parte importante do seu projeto de vida. Em nome disso, custam a acreditar que o parceiro tenha praticado um estupro.

“É muito difícil para uma mulher lidar com o fato de que o seu marido, o amor da sua vida, seja um agressor. Por isso, há muitas idas e vindas, ela pondera muitas coisas antes de denunciar”, avalia Isabela.

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A paulistana Joyce, mulher trans de 33 anos, sonhava em casar, ter filhos e construir uma bela família. Ao conhecer o marido, não cabia em si de felicidade, justamente por acreditar que havia dado um passo importante para realização deste sonho. Infelizmente, o sonho virou um pesadelo.

“Ele me procurava para fazer sexo, eu dizia que não, mas ele insistia e me penetrava, mesmo sem que eu estivesse lubrificada. Era uma dor horrível”, relata Joyce.

Além do sexo forçado, ainda tinha a pressão de sustentar a casa sozinha, pois o marido não conseguia emprego. Para piorar a situação, Joyce passou a ser vítima de um ciúme doentio.

“Eu botava uma roupa para sair, ele dizia: ‘você vai dar para outro’ e começava a me bater. Eu tinha consciência de que sofria violência, mas eu sonhava com uma família. Eu achava que o problema estava comigo, mas depois vi que ele é que era um agressor”

Segundo Isabela Del Monde, o caso de Joyce descortina um ponto nebuloso que favorece a invisibilidade do estupro marital, o artigo 213 da Lei 12.015, de 2009, que altera o Código Penal e define o estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”

“Eu tenho certeza que muitos juízes diriam, nesse caso da entrevistada, que ela deveria não ter praticado [sexo], se ela não quisesse. Se não houve violência armada ou grave ameaça, não houve estupro. Esse elemento caracterizador do crime, muitas vezes, vai impedir que a violência sexual no casamento seja registrada como estupro marital”, analisa a advogada.

Para a psicóloga e diretora de Saúde do MeToo Brasil, Mariana Luz, a dificuldade de abordar o estupro marital tem impacto na saúde mental das vítimas.

“Muitas mulheres sofrem o estupro marital e ainda se sentem pressionadas pela ideia de que são culpadas pelo insucesso da relação. Isso pode causar ansiedade, depressão, baixa autoestima e perda do apetite sexual e da autonomia sobre o próprio corpo, assuntos sobre os quais as mulheres já são tolhidas de falar abertamente”

Educação sexual para reconhecer a violência

O espaço escolar pode ser um aliado para trabalhar conceitos como consentimento, direitos sexuais e reprodutivos. Para a assistente social Melina Pimentel, a educação tem o papel de desconstruir a violência sexual no adulto e construir a autonomia sobre o corpo, já na infância.

“Essa educação é o caminho para que a mulher tenha o direito de escolha de ter ou não relação sexual, de ter filhos ou não”, avalia Melina, que coordena o Programa de Oportunidade e Ressignificação do Coletivo Mulher Vida, ONG de Recife que combate a violência doméstica.

“É preciso ensinar meninas e meninos sobre consentimento e liberdade e desnaturalizar a ideia de que mulheres têm uma dívida com seus parceiros, que as obriga a ter relações sexuais contra sua vontade”, completa Isabela Del Monde.

“Também é preciso criar estruturas para que as mulheres, especialmente as mulheres negras, sejam encorajadas a buscar a polícia sem medo de serem criminalizadas”

À reportagem da Gênero e Número, o Ministério das Mulheres informou, por e-mail, que está revisando normas e protocolos de atendimento à violência sexual e reestruturando a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180. Segundo o órgão,  foram  inseridos os termos consentimento, estupro de vulnerável e corretivo e violência sexual por meio de fraude, na base de dados sobre legislação e informação do canal.

O Ministério também afirmou que está realizando capacitações com atendentes do Ligue 180 e promovendo ações interministeriais de combate à misoginia, “raíz de todas as formas de violência”, afirma o texto.

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Legislação sobre violência sexual

Até bem pouco tempo, a obrigação de satisfazer o desejo sexual do marido estava prevista em lei para as mulheres. O Código Civil de 1916 trazia a premissa de débito conjugal. A legislação dava o direito ao homem de encerrar o casamento, caso a mulher não cumprisse os seus deveres como esposa.

O Estatuto da Mulher Casada, de 1962, e mais recentemente o Novo Código Civil, de 2002, retiraram a premissa do débito conjugal e equiparam mulheres e homens na sociedade conjugal.  A Lei Maria da Penha tipificou as formas de violência de gênero no espaço doméstico e, em 2009, a Lei 12.015 classificou a violência sexual como um crime contra a dignidade e a liberdade sexual da mulher.

“Antes dessa mudança, a violência sexual era um crime contra os costumes. Veja que o que estava em jogo era a proteção dos costumes”, observa Isabela Del Monde.

Em 2018, diversos tipos de crimes sexuais foram tipificados pela Lei 13.718.  Entre eles estão os crimes de importunação sexual, que consiste em qualquer ato sexual realizado sem consentimento, e o estupro corretivo, praticado com o intuito de corrigir a orientação sexual da vítima.

Mas a depender de iniciativas legislativas para mudar o quadro de invisibilidade do estupro marital, é possível que as coisas fiquem como estão por mais um tempo. A reportagem identificou 99 projetos de lei na Câmara dos Deputados e seis no Senado que contêm a palavra estupro.

Somente um deles, o Projeto de Lei 3.470, da deputada Federal Iza Arruda (MDB-PE), tipifica o estupro marital. A proposta, apresentada em julho de 2023, trata do acréscimo de um inciso ao artigo 213 do Código Penal, que distingue os estupros praticados por parceiros ou ex-parceiros íntimos.

O PL aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. A reportagem procurou a assessoria de imprensa da deputada para entender melhor como, na prática, essa tipificação poderia vir a favorecer o combate ao estupro marital, mas não obteve resposta.

Reportagem republicada em parceria com o coletivo jornalístico Gênero e Número

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