Repercussão do caso Esaú Matos revela histórico de violências obstétricas no hospital
O Site Avoador entrou em contato com oito mulheres que contaram o quanto a passagem pelo hospital foi traumática durante o parto 28 de março de 2025 Rian Borges, Luan Pereira, Pedro Meireles e Lázaro OliveiraNesta semana, a morte de um recém-nascido no Hospital Municipal Esaú Matos, em Vitória da Conquista, repercutiu pela Bahia em diferentes veículos de notícias, como G1, TV Sudoeste e Jornal Conquista e trouxe à tona um histórico de violências obstétricas no mesmo local nas redes sociais, algo denunciado pelo Site Avoador em 2017. A mãe da criança deu entrada no Hospital Municipal, na quinta-feira (20/03), para iniciar o trabalho de parto, mas o bebê só nasceu 40 horas depois, no sábado, tendo falecido em seguida na UTI (Unidade de Terapia Intensiva).
Casal que perdeu o filho no Hospital Municipal Esaú Matos. Foto: Reprodução Tv Sudoeste
A família do recém-nascido, que fez uma denúncia na Polícia Civil, em Conquista, acusa o Hospital Municipal Esaú Matos de negligência na condução do parto. Segundo a mãe, Caroline Rodrigues, e o pai, Aparecido da Silva, os profissionais que trabalhavam na unidade demoraram para realizar a cesariana. O atestado de óbito da criança, apontou quatro causas para a morte: choque séptico, hemorragia pulmonar, hipertensão pulmonar e síndrome de aspiração de mecônio.
A professora do curso de Medicina da Uesb, Monalisa Barros, que defendeu no doutorado a tese “Reconfigurando um modo de ver o parto”, que não está em Conquista nem acompanhou o caso, mas aceitou dar uma explicação geral sobre o trabalho de parto e o mecônio. “O bebê, quando está dentro da barriga, engole o líquido amniótico, o qual contém pedaços, grânulos, do próprio líquido ou pele do bebê. E quando o bebê está maduro, é natural que ele defeque. O mecônio é esse cocô dele. Quando há uma restrição de líquido e uma demora na saída desse bebê, pode acontecer a aspiração desse cocô. E um bebê que aspirou, porque ainda está lá dentro, não está usando ainda o pulmão”, detalhou. “Ele está respirando pelo umbigo, sendo o cordão umbilical o responsável por entregar água, oxigênio e nutrientes para o bebê, que ainda não usa o nariz nem o pulmão para respirar. Então, o bebê está com o pulmão cheio de líquidos enquanto ele está dentro da barriga. O processo de trabalho de parto, a saída, a passagem pelo canal, ajuda o bebê a expelir tudo isso. Se houver um atraso, se ele aspirou algo, isso entope o pulmão, e aí, ele terá dificuldade de respirar ao nascer e pode vir a óbito”, disse.
Segundo ela, esse processo é nomeado da síndrome de aspiração de mecônio, que ocorre quando há uma perda acentuada de líquido com a demora no processo de trabalho de parto. “Nesses casos, o que faz o processo se tornar seguro é o monitoramento cardíaco do feto, que deve ser realizado a cada 15 minutos. Esse procedimento contínuo permite avaliar se há aceleração ou queda nos batimentos, o que indicaria uma intervenção imediata, a urgência da cesariana.”
A professora do curso de Direito da Uesb, advogada e diretora da União de Mulheres, Luciana Santos Silva, esclareceu que a falta de atendimento adequado à gestante na hora do parto pode se configurar como violência obstétrica. “É importante que a gente use o termo violência no plural, violências. E essas violências, elas podem acarretar crimes como também responsabilização, ou seja, condenação em danos morais e danos materiais.”
Ela também ressaltou que essas violências obstétricas, além de violarem direitos da mãe, podem violar também os direitos da criança. “No caso que vem sendo amplamente divulgado, o óbito de um bebê no Hospital Esaú Matos, o atestado de óbito vem sinalizando que a criança morreu por conta de demora no parto. Então, além dos direitos violados pela mãe, pode também estar acontecendo crimes em que a vítima é o bebê”, disse. “É esperado, inclusive nesse caso recente do Isaú, que a Polícia Civil instaure o inquérito para apurar se houve responsabilidade criminal diante do óbito do bebê.”
Em nota, a Fundação Pública de Saúde de Vitória da Conquista, gestora do hospital, justificou que “como não apresentava sinais de trabalho de parto ativo, foi adotada a indução com o uso de misoprostol”. No mesmo comunicado a instituição descreve https://drive.google.com/file/d/1tkI5tozSrP7sqoJq7qffaUVRlIqlj2wS/viewque esse procedimento é “aplicado em casos em que não há indicação imediata de cesariana”.
Outras denúncias de violência obstétricas
Com a repercussão deste caso na região, nos últimos dias diversas mulheres foram às redes sociais para se solidarizar com a mãe e criticar o hospital. Essas mulheres relatam em comentários que também tiveram problemas com trabalho de parto no Hospital Municipal Esaú Matos. O Site Avoador entrou em contato com oito delas para saber mais de suas histórias.
Mulheres denunciam violências obstétricas pelas redes sociais. Foto: Print do Instagram
“Meu filho ficou com várias sequelas, como microcefalia, decorrente da pressão craniana, paralisia cerebral e convulsões de difícil controle. Hoje, ele toma em média 30 medicações.” Esse é o relato de Gabriela Pereira no Instagram, que teve o seu filho no dia 3 de abril de 2021, no Hospital Municipal, onde ficou na UTI por 35 dias.. Ela descreveu que ficou 72 horas em trabalho de parto e o seu filho nasceu “praticamente morto”, sendo preciso realizar três reanimações. Atualmente, o filho de Gabriela está em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), em Salvador.
Silvana Bertolo contou que, em 2007, quando tinha 16 anos, foi ao Esaú Matos para realizar o parto bebê. Quando estava na sala de parto, a médica do hospital disse para Silvana: “não me toque e para de gritar”. A mulher afirmou que hoje, com 33 anos, entende que sofreu violência obstétrica no local. “Fui brutalmente abusada psicologicamente, e se naquela época, com 16 anos, tivesse entendido o que aconteceu ali, teria gravado o nome daquela médica sem empatia e processado ela.”
Assim como no caso desta semana, Juscimara Freire esperou mais de 40 horas para parir o seu primeiro filho. A mulher relembrou que, quando chegou no local, a equipe médica não a auxiliou no deslocamento até a sala de parto, atividade que foi exercida pelo seu marido. O parto de Juscimara teve complicações e o bebê precisou ser levado para a oxigenação. A mulher relata que durante esse tempo, ficou sozinha no hospital e sem informações sobre a criança.
Erika Brito denunciou que também teve uma experiência “péssima” no Hospital Municipal. Com 37 semanas de gestação, a mulher disse ter esperado diversas horas para ser atendida. Durante os exames, ela descobriu que deveria realizar a cesariana devido ao tamanho do bebê. Entretanto, a equipe médica contrariou o procedimento e tentou induzir o parto normal. Depois, a mulher teve que passar por uma cesariana de emergência devido a complicações nos batimentos cardíacos da criança. “Esse tratamento que recebi no hospital foi desumano”. Ela também descreveu que o hospital não possui estrutura e a comunicação da equipe médica com os pacientes e com a família não existe.
Em 2017, em reportagem realizada pelo Site Avoador, quando 18 mulheres foram entrevistadas, denúncias de violências obstétricas eram a realidade no mesmo hospital. De lá para os dias atuais, mulheres continuam a passar pela mesma situação.
Lei Municipal contra violência obstétrica
No ano seguinte, após o impacto da reportagem do Site Avoador, as então vereadoras Nildma Ribeiro (PCdoB) e Márcia Viviane (PT) propuseram e conseguiram a aprovação na Câmara Municipal de Vitória da Conquista da Lei Nº 2.228, que protege mulheres contra a violência obstétrica.
A vereadora Márcia Viviane (PT), que foi a autora da lei, afirmou ser “inaceitável que mulheres passem por qualquer forma de violência ao buscar atendimento médico”. A vereadora ainda disse que a Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres, da qual preside, está acompanhando o último caso que chegou à mídia.
Segundo a lei, a violência é caracterizada como a “apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos (as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres”.
A Lei Municipal ainda elenca em seus incisos, do artigo três, condutas que configurariam como violência obstétrica. Inclusive, os estabelecimentos de saúde públicas e privadas, que possuem convênio com o Sistema Único de Saúde (Sus), devem expor essas informações no local. Confira abaixo alguns incisos.
I – Tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido;
II – Fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas, ou por qualquer característica física como, por exemplo: obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros;
III – Não ouvir as queixas e dúvidas da mulher internada e em trabalho de parto;
IV – Tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz;
V – Fazer a gestante ou parturiente acreditar que precisa de uma cesariana quando esta não se faz necessária, utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos riscos que alcançam ela e o bebê.
Imagem destaque: FreePix