Ao alcance de um clique: indicações de séries que fazem refletir

Produções de serviços de streaming disponíveis no Brasil, como Netflix e Amazon Prime, entretém e provocam reflexões sobre o racismo, o sistema capitalista e o que é ser humano em nossa sociedade 10 de fevereiro de 2020 Ricardo Santos

É totalmente compreensível quando alguém prefere ficar em casa ao invés de ir ao cinema. Hoje em dia, não faltam séries excelentes para assistir no conforto do seu lar, com um custo-benefício muito mais atraente. É até impossível acompanhar o volume de produções de qualidade, entre lançamentos e novas temporadas.

As produções recomendadas abaixo podem ser vistas nos serviços de streaming disponíveis no Brasil. São séries que entretém, mas também nos fazem pensar sobre a nossa própria existência, o que é ser humano, e, consequentemente, sobre os rumos de nossa sociedade. Além disso, há uma preocupação na diversidade de seus personagens, no protagonismo dessa representação, algo não só necessário, mas inerente a nossas vidas.

Cara gente branca é uma ótima maneira de qualquer pessoa entender como o racismo opera na sociedade. A série mostra a vida de estudantes negros numa universidade americana de elite. A escolha do cenário é certeira. Num ambiente onde o pensamento progressista deveria dominar, arma-se um campo de batalha racial depois de uma festa blackface. A partir daí o espectador tem contato com todos os aspectos da vida universitária, principalmente os menos nobres.

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“Cara gente branca é uma ótima maneira de qualquer pessoa entender como o racismo opera na sociedade”, Ricardo Santos. Foto: Divulgação/Netflix

A sistematização do racismo no campus não é muito diferente do que acontece em outros espaços sociais. Num lugar onde o jovem negro devia se sentir seguro, a violência simbólica é mais articulada, e a violência física é a mesma do mundo lá fora. Acompanhamos as várias nuances da experiência do jovem negro pelo ponto de vista de um elenco de personagens complexos.

À primeira vista, os personagens podem ser vistos como estereótipos (a ativista, a patricinha, o radical, o capitão do mato), mas a série dá oportunidade para que o espectador e os próprios personagens reflitam sobre quem eles são, a fundo. A todo momento, esses jovens tentam entender como fazer parte de uma sociedade que assimila e enaltece a cultura negra, mas que não se importa com corpos e mentes de gente negra. O humor aqui não é para gargalhar. Está mais para uma ironia incômoda. A série está em sua 3ª temporada, disponível na Netflix.

Mr. Robot expõe as vísceras das megacorporações, a razão de ser do capitalismo. A série tem um clima cyberpunk, tanto pelas ideias anti-establishment como pela estética soturna. É um retrato realista da cultura hacker (na medida do possível, segundo especialistas). A primeira temporada é surpreendente em sua intensidade. A trilha sonora eletrônica retrô de Mac Quayle é decisiva para causar esse efeito. As músicas de artistas de décadas anteriores, como Echo and The Bunnymen, Pixies, Tangerine Dream e Neil Diamond, contribuem para reforçar o tom de ironia nervosa, de desconforto com os tempos atuais.

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“Mr. Robot expõe as vísceras das megacorporações, a razão de ser do capitalismo”, Ricardo Santos. Foto: Divulgação

Os roteiros possuem diálogos perturbadores e a trama se desenvolve fugindo de clichês, com reviravoltas convincentes e que deixa o espectador sem chão. As temporadas posteriores perdem essa perfeição narrativa, mas ainda assim entregam ao espectador uma experiência acima da média. Eliott, o hacker protagonista, vivido por Rami Malek, vencedor do Oscar por interpretar Freddy Mercury, incorpora monstruosamente bem a atmosfera de desesperança e paranoia da série.

À medida que os episódios avançam, você reconhece referências de filmes e séries que todo mundo já viu sobre luta contra o sistema. Mas o criador, Sam Esmail, também se inspirou no mundo real, no movimento Occuppy, na Primavera Árabe, na era pós-Snowden. Mas há uma contradição de fundo, no mínimo, estranha: como considerar a autenticidade de uma série sobre derrubar o sistema que é financiada por um canal de TV pertencente a uma corporação de mídia? Nos EUA, a série terminou na 4ª temporada em 2019. No Brasil, está disponível no Amazon Prime.

Em Master of None, Aziz Ansari foi inteligente em criar e estrelar uma série cômica que não fosse estúpida, como The Big Bang Theory, nem escrota, como South Park. Ele calibrou os riscos da empreitada, entregando uma produção diferente, mas que não deixasse de ser fofa, de criar empatia. O que Ansari traz de novo à comédia romântica é a visão de um protagonista que não é branco.

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“O que Ansari traz de novo à comédia romântica, em Master of None, é a visão de um protagonista que não é branco”, Ricardo Santos. Foto: Divulgação/Netflix

É muito interessante ver um cara, descendente de indianos, tentando viver uma vida normal. Claro que temas importantes como racismo, misoginia, homofobia e estereótipos culturais estão presentes na série, em destaque. Porém, esses temas são trabalhados de maneira orgânica no roteiro, sem parecer forçado e sem perder sua urgência.

A série tem uma pegada pop, com uma pitada hipster, cheia de ótimas músicas. É uma atração leve. Alguns diriam leve demais para um mundo em explosão, considerando a intolerância a minorias e culturas não brancas, mas a série não é desonesta. Entrega o que propõe, sem ser esquecer o contexto diverso e complicado em que vivemos. Suas duas temporadas estão disponíveis na Netflix.

The Expanse é uma espécie de Game of Thrones no espaço. Centenas de anos no futuro, a humanidade colonizou o sistema solar, mas está longe de ser um futuro pacífico. Há uma disputa de poder entre os terráqueos, os marcianos e os belters. Os terráqueos têm os maiores recursos e as forças armadas mais poderosas. Os marcianos são humanos que colonizaram o planeta vermelho e se tornaram uma sociedade militar, de recursos limitados, independente da Terra. E os belters são basicamente mineiros que vivem em um cinturão de asteroides distante, explorados tanto pela Terra como por Marte.

A vontade de independência dos belters é enorme. É uma space opera mais sombria e realista (claro que com suas liberdades dramáticas se tratando de espaço sideral), com personagens muito bem desenvolvidos e com personalidades complexas. Os heróis fazem coisas terríveis e os vilões não são cartunescos, possuem motivações convincentes. A força da série está justamente nos personagens e na trama, que mistura elementos de suspense, aventura espacial e uma boa pitada de terror.

The Expanse

Foto: Divulgação

Outro triunfo aqui é apostar na diversidade. Nisso ela ganha de lavada de Game of Thrones. Sua criação de mundo é muito rica, com várias culturas e línguas ao redor da galáxia, passando pelas mudanças na estrutura corporal e reação à gravidade de terráqueos, marcianos e belters e as tecnologias que permitem a viagem no espaço. Há toda uma variedade de gente, seja como protagonistas, coadjuvantes ou para compor cenários de fundo. São personagens negros, asiáticos, árabes, latinos, indígenas. Suas 4 temporadas estão disponíveis no Amazon Prime.

*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).

Foto de capa: Unsplash

Foto/The Expanse: Divulgação/Amazon Prime

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