Carta simbólica à Marielle Franco: a luta feminista após sua morte

Na coluna #Entrelinhas desta semana, a jornalista e poeta Morgana Poiesis retoma a trajetória da política carioca e sua importância para o movimento das mulheres no Brasil 23 de novembro de 2020 Morgana Poiesis

Cara Marielle,

Sabemos que você não receberá esta carta em mãos, como gostaríamos. No entanto, esperamos que ela possa ser lida pelas mulheres que você representa e, através das quais, continua presente entre nós.

Começaríamos fazendo uma confissão: até agora, nos mantivemos alheias às disputas da macropolítica, desejando uma revisão radical do conceito de estado e da própria democracia representativa a qual ele corresponde. Há uma década, estivemos dedicadas às poéticas micropolíticas, nos manifestamos através de performances artísticas nas ruas de diversas cidades brasileiras. Julgamos que esse seria o nosso lugar de fala e atuação no mundo. Diante da sucessão de golpes políticos à nossa mátria, nos últimos anos, as quais destacamos o ilegítimo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, as perseguições morais à Manuela D’Ávila e outras candidatas aos cargos políticos em diversas esferas no país e,  mais gravemente, o seu assassinato ainda impune, desconfiamos que o nosso empenho micropolítico não tenha sido suficiente, e que a exclusividade dessa escolha possa ter colaborado para a tomada de oportunistas ao centro do poder e para os abusos de suas gestões.

Tivemos notícias dos seus empreendimentos em vias da consolidação de políticas públicas para mulheres, no Brasil, a propósito da Lei Casa de Parto, com o objetivo de proporcionar o parto normal das mulheres vítimas de violência obstétrica, bem como sua tentativa de instituir o Dia da Visibilidade Lésbica no Rio de Janeiro, estado que hoje conta com o 14 de Março como o Dia Marielle Franco, no calendário oficial, em homenagem à luta contra o genocídio da mulher negra, se contrapondo à tentativa de apagamento da sua memória, pelas forças arbitrárias que você combatia.

A história não nos permite acreditar que a justiça no Brasil possa ser efetivada pelas estruturas burguesas do Estado, donde nossa aliança poética com Maria Bonita, a justiceira do cangaço. Da mesma maneira, reverenciamos a autonomia do Instituto Marielle Franco, que nos convoca à escritura desta carta a qual, após longo e necessário prelúdio, vem relatar a que veio. 

Cédulas utilizadas no protesto

Carimbo utilizado para questionar a morte do jornalista Vladimir Herzog

Trata-se da intersecção entre a arte e o feminismo, na nossa performance Quem matou Marielle?, em que carimbamos essa pergunta em cédulas de dinheiro. Desejamos, com isso, produzir uma espécie de interferência semiótica, à maneira das proposições poético-políticas de Cildo Meireles, como Inserções em Circuitos Ideológicos, nas quais mensagens críticas eram inseridas em determinados produtos comerciais, depois devolvidos à circulação. Fizeram parte dessas inserções de Meireles o projeto Coca Cola (que consistia em escrever, sobre uma garrafa de Coca Cola, mensagens críticas ao imperialismo norte-americano), o Zero Cruzeiro e o Zero Dolar (em que imagens oficiais de réplicas das notas do cruzeiro e do dólar eram substituídas pelas imagens de índios, psicóticos, ou Tio Sam) e o Cédula (em que indagações perturbadoras como Quem matou Herzog? eram gravadas em notas de dinheiro). Nossas poéticas micropolíticas pretendem “funcionar no interior de circuitos de controle de informação não centralizada, onde o indivíduo pode se fazer ouvir numa escala muito grande, desproporcional à sua condição individual”, dizia Meireles em 2011.  

Infelizmente, desde o início da pandemia do covid-19, enquanto assistimos ao crescimento vertiginoso da violência doméstica de gênero na quarentena, tivemos que interromper a nossa performance artística, sendo as cédulas de dinheiro superfícies de alto contágio do vírus que ameaça a vida humana no planeta, o qual, ao seu modo, precisa se regenerar da própria humanidade. Além disso, devemos dizer que as cédulas se tornaram escassas em nossas mãos, até mesmo ausentes, durante essa crise econômica que vivenciamos no Brasil. De maneira igualmente infeliz, não temos perspectivas de quando poderemos retomar à desobediência poética e civil implicada na performance artística mencionada, dada a ausência de uma política pública de saúde em nosso país, bem como de práticas conscientes por parte dos seus próprios cidadãos e cidadãs, no combate efetivo ao novo coronavírus. O carimbo está guardado numa gaveta, enquanto isso, nossas cartas sendo lançadas ao mundo, como uma via ainda possível de expressão.

Saudações feministas,

Morgana Poiesis

Brasil, 2020.

Foto de capa: Mídia Ninja

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