Distopia escancara o racismo

Entre erros e acertos, estreia na direção de Lázaro Ramos é impactante, e é uma grande metáfora sobre os tempos de hoje, como toda boa ficção científica 26 de abril de 2022 Ricardo Santos

De certa maneira, Medida Provisória é o sonho molhado de qualquer reacionário brasileiro. Mandar de uma vez por todas os diferentes pra Cuba, pra Venezuela, pra África.

O filme se passa num futuro próximo, mas, na verdade, trata-se de uma grande metáfora sobre os tempos de hoje, como toda boa ficção científica.

A irracionalidade e o preconceito atingiram índices alarmantes no Brasil. Atualmente muitas pessoas batem no peito e se declaram, sim, racistas, homofóbicas, xenófobas, sem o menor pudor. Todos motivados por uma postura oficial de governo.

No filme, quando a medida provisória 1888 é aprovada no Congresso Nacional, o aparato político-policial implementa o envio compulsório de todos os “melaninados acentuados” do país para nações africanas, como forma de reparação histórica pela escravidão.

A operação envolve burocratas, forças de segurança e a própria população a favor da medida. O que gera confusão, revolta, luta e violência. E as reais intenções por trás de tudo são as mais nefastas possíveis. Como diz o personagem do Ministro da Devolução, fica mais barato matar pretos do que pagar a passagem de ida.

Medida Provisória acerta demais ao dar uma cara cinematográfica à adaptação da peça Namíbia, Não!, do autor Aldri Anunciação. Em algumas cenas dramáticas, vemos a dor da degradação da pessoa negra, sem apelar para uma violência gratuita, sádica. O que é mostrado já é suficiente para causar desconforto e indignação. Ao mesmo tempo, há a inserção habilidosa de momentos cômicos que funcionam muito bem, porque o melhor humor é aquele que tira sarro dos racistas e poderosos. Além disso, certas cenas emocionam pela conexão entre os personagens com suas alegrias e perdas.

Os problemas do filme incomodam, uma vez que quebram o ritmo e nos tiram da imersão naquela história. Câmera tremida demais em alguns trechos, diálogos que viram longos discursos contra ou a favor dos perseguidos, parte do elenco de apoio com atuações frágeis ou instantes de exagero por parte dos protagonistas, com gritos, caras e bocas, e algumas soluções de roteiro um tanto fáceis, convenientes.     

Mesmo sabendo que vários aspectos relacionados à negritude e ao racismo são tratados sem tantas nuances, Medida Provisória é impactante. É uma sátira sombria. A intenção é ser um soco no estômago do espectador, principalmente, do espectador branco. E também uma peça de resistência, de afirmação. É uma produção com vocação para ser popular, para encher salas de cinema, gerar debates e atitudes.

Medida Provisória, direção: Lázaro Ramos, 94 min., com Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves e Renata Sorrah.

*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019). Ele e Morgana Poesis são os responsáveis pela coluna #Entrelinhas, com publicações a cada 15 dias no site Avoador.

Foto destacada: Reprodução do cartaz de divulgação do filme.

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