Documentário Amigo Secreto revela como a Lava-Jato se forjou na vaidade e na ilegalidade do Judiciário

O escritor Ricardo Santos, em sua resenha crítica da filmografia, mostra como a diretora e roteirista Maria Augusta Ramos desconstrói o mito do combate à corrupção 11 de julho de 2022 Da Redação

Amigo Secreto é um documentário necessário. Mostra de maneira clara como a Lava-Jato se tornou a maior operação lesa-pátria da história recente do Brasil. Com o suposto objetivo de combater a corrupção, os membros da Lava-Jato e seus apoiadores no Judiciário e no Legislativo feriram a Constituição, ameaçaram o devido processo legal e quebraram as pernas de parte importante dos setores de infraestrutura e petroquímico do país.

Agora está mais que evidente que um grupo político utilizou os meios, órgãos e instituições de fiscalização do estado democrático liberal para perseguir e minar as forças de outro grupo político, de outra forma de governar, da própria esquerda. Tudo isso representado na figura do ex-presidente Lula.

O que pode ser constatado, a partir de processos, inquéritos, gravações de depoimentos, áudios vazados, textos jornalísticos, livros e outros materiais, é que, em nome de interesses privados e de um projeto político conservador (e porque não dizer, fascista), a sociedade brasileira foi manipulada. O resultado mais concreto e acachapante dessa manipulação se deu com a eleição de Bolsonaro em 2018.

O ponto de partida de Amigo Secreto foram as matérias publicadas pelo The Intercept Brasil, El País Brasil e outros meios de comunicação, revelando os áudios vazados de grupos de Telegram entre o ex-procurador do Ministério Público Federal, DeltanDallagnol, e o ex-juiz Sérgio Moro.

Não há nada de muito novo para quem acompanhou com atenção a ascensão e queda da Lava Jato, das primeiras fases espetaculosas da operação até a votação do STF pela suspeição da conduta do ex-juiz Moro e de a ONU considerar que os direitos do ex-presidente Lula foram violados. O maior mérito do filme é juntar as principais peças do quebra-cabeça referente aos bastidores da Lava Jato e analisar quais foram suas implicações, ilegalidades e o impacto na economia. É um resumo cuidadoso e didático que desmonta a narrativa elaborada pelos agentes da Lava-Jato que justificava a tese de combate à “corrupção dos governos petistas”, principalmente na Petrobras.

Mostra-se que, na verdade, esse combate à corrupção foi seletivo, deixando de fora, por exemplo, operadores a serviço de políticos do PSDB. Os esquemas de propina na Petrobras já faziam parte da cultura da empresa desde sua fundação. E mesmo assim, o impacto nos lucros da estatal era de cerca de 0,002% dos R$ 3 trilhões que já chegou a faturar. No final, fatias importantes da Petrobras foram vendidas para empresas estrangeiras e multas milionárias foram indevida mente pagas ao governo dos EUA. Empreiteiras, como Odebrecht e OAS, e outras empresas da construção civil, financiadoras de campanhas políticas de todas as legendas possíveis, quebraram ou diminuíram investimentos, ocasionando o desemprego direto e indireto de 1,1 milhão de trabalhadores. No total, foram 4,4 milhões de posto perdidos, considerando outros setores. Criou-se uma “fábrica de delações premiadas”, permitindo que acusados assinassem acordos para redução de penas. Posteriormente, comprovou-se que muitos mentiram sob coação para prejudicar terceiros. O ex-presidente Lula foi condenado sem provas materiais, e sim por ilações, suposições, sema presentarem que benefícios concretos ele usufruiu, fruto de qualquer esquema de corrupção. Abriu-se um precedente perigosíssimo que poderia violar os direitos de plena defesa de qualquer cidadão brasileiro.

A participação do governo americano nos bastidores da Lava-Jato merece um capítulo à parte. O Departamento de Estado e de Justiça dos EUA e o FBI atuaram de forma muito próxima aos membros da força-tarefa. Mas essa relação era geralmente cheia de intenções não declaradas, por parte dos americanos, e de subserviência, por parte das autoridades brasileiras. E os olhos dos gringos voltaram-se para o Brasil justamente após a descoberta, em 2006, do Pré-Sal, a grande reserva de petróleo em águas profundas no litoral do Rio de Janeiro. E não, não se trata de teoria da conspiração, como comprovam reportagens do jornal francês Le Monde, do próprio The Intercept Brasil e de outros veículos. É o tal do lawfare (guerra jurídica), também conhecida como guerra híbrida, executada pelos EUA em todo o mundo. Como disseram no filme, melhor do que jogar uma bomba, é mais eficiente atingir a economia de determinado país, para deixá-lo mais vulnerável aos interesses dos americanos.

Outro ponto importante é o papel da imprensa durante o auge da Lava Jato. Houve pouca apuração e muita conveniência em aceitar as versões apresentadas pelo Ministério Público Federal e outras instituições como verdades absolutas. Não custa lembrar que os grandes meios de comunicação fazem parte de corporações maiores, que envolvem empresas de outros setores da economia, e que tinham interesses diretos nos desdobramentos da Lava-Jato.

Diretora e roteirista Maria Augusta Ramos. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

A experiente diretora e roteirista Maria Augusta Ramos, responsável por documentários como Justiça (2004) e O Processo (2018), não tem ambições estéticas em Amigo Secreto. O importante aqui é o seu conteúdo. Os fios que constroem essa narrativa de denúncia do assalto à soberania e autonomia de um país, perpetrado por uma elite nefasta e por aqueles que fazem qualquer negócio para chegar ao poder.

Ricardo Santos é escritor, editor e ex-aluno do curso de Comunicação da Uesb. Seu livro mais recente é a antologia de contos Farras Fantásticas (editora Corvus, 2021).

Imagem em destaque: Vitrine Filmes/Divulgação

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