Allan de Kard e as obras no espaço público de Conquista
Com a instalação do “Covidão” o artista tem agora 14 obras espalhadas na cidade, sendo as mais conhecidas e motivo de polêmicas as do canteiro da Avenida Olívia Flores 18 de outubro de 2020 Avoador (Carmen Carvalho, Felipe Ribeiro, Cristiane Silva e Andressa Oliveira), Gambiarra (Ana Paula Marques, Rafael Flores e Erick Gomes) e Gabriela CoutoUm acontecimento chamou a atenção dos moradores de Vitória da Conquista no dia 23 de setembro. Uma escultura da covid-19, o novo coronavírus, foi colocada no canteiro da Avenida Olívia Flores, no caminho da Uesb, pelo artista plástico e empresário, Allan de Kard, em homenagem aos profissionais que lutam contra a doença, o “Monumento aos Heróis da Saúde”. A obra gerou discussão nas redes sociais, com críticas à representação escultural do tema, e provocou debate sobre a regularização do uso do espaço público pelos artistas.
Em meio à polêmica do “Covidão”, como a obra foi apelidada pela população, veio à tona o fato de Allan de Kard ter poder econômico para fazer obras tão dispendiosas e um bom relacionamento político, tanto com o prefeito anterior, Guilherme Menezes (PT) como também com o atual, Herzem Gusmão (MDB), para conseguir e manter 14 obras instaladas na cidade, das quais cinco são na Olívia.
Em publicações nas redes sociais, pessoas ressaltaram que não se sentiram representadas pela obra por enaltecer o vilão, a doença, ao torná-lo concreto e visível a todos. “Imaginem homenagear as vítimas da Segunda Guerra Mundial com uma estátua de Hitler? É a mesma referência!”, enfatizou uma das publicações. Já outra dizia: “Como sempre, de mal gosto. Não sei como ele acha que é um artista plástico. O pior é a prefeitura deixar de colocar essas monstruosidades pela cidade. Não sei quem tem menos juízo ele ou a prefeitura”.
Houve ainda interpretações positivas sobre a obra. Uma internauta escreveu: “Uma obra artística, pode ter diferentes interpretações. Para mim essa obra, transmitiu que a humanidade está passando por dificuldades,por conta do corona virus e que teremos uma vacina para nos salvar. Alguns veem a morte e outros a cura!”. Já ex-responsável pela Secretaria Municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel), do atual governo, Tina Rocha, exaltou, em áudio compartilhado no Whatsapp, que a obra permite a visibilização de um vírus que ninguém vê, mas que faz tanto mal. “Na Semana de Arte Moderna de 1922, Portinari e a pianista Guiomar Novais levaram tomate, levaram ovo. A arte é isso, uns gostam, outros não gostam, outros acham bonito, outros não. A arte é assim.” Dos comentários nas plataformas de redes sociais aos aplicativos de mensagens às ruas, a obra ficou conhecida dos moradores da cidade rapidamente.
Além dessa repercussão, a obra mobilizou o Conselho Municipal de Cultura de Vitória da Conquista (CMC) a uma reunião ordinária no dia 24 de setembro com a pauta sobre o espaço público. “Fomos surpreendidos com a notícia na mídia local de mais uma obra na Olívia de Allan de Kard. Nós já tínhamos orientado o artista sobre a necessidade de regularizar as instalações”, disse o presidente em exercício do órgão, Vinícius Gil. Atual presidente Maris Stella Schiavo Novaes pediu afastamento do cargo para concorrer à prefeitura de Conquista nas eleições de 2020.
A Prefeitura de Conquista ainda não possui regulamentação sobre como o espaço público pode ser ocupado pelos artistas locais. No entanto, desde 2016, existe a Lei do Sistema Municipal de Cultura que estabelece o CMC como um órgão colegiado consultivo, deliberativo e normativo das manifestações culturais. Essa última obra não passou pelo Conselho nem por outras instâncias municipais para autorização. “Houve um desrespeito à instituição cultural municipal e às orientações dadas ao artista anteriormente”, destacou Vinícius.
As cinco primeiras obras de Allan de Kard foram instaladas na Olívia Flores em 8 de julho de 2015, com uma autorização do então prefeito, Guilherme Menezes (PT), para permanecerem no local por um ano. Desde então, entrou uma outra gestão no município, a do atual prefeito, Herzem Gusmão (MDB), e nenhuma outra autorização, seja de ampliação do prazo ou remoção das obras, foi publicada. Em 12 de dezembro de 2019, Allan foi convidado pelo CMC para se manifestar sobre a coleção de esculturas da Olívia. Na ocasião, ele explicou o motivo de manter as esculturas no local e informou que elas estavam em processo de tombamento no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), da sede em Salvador, desde 2018.
“Eu deixei as minhas obras na Olívia porque tive a aquiescência dos dois governos municipais, tanto de Guilherme como de Herzem Gusmão”, explicou Allan de Kard. Segundo ele, de sua parte, não há nenhum atrelamento político a partido e que nem faz campanha política, nem de presidente, governador e prefeito. “As obras foram colocadas em gestões de diferentes partidos. Em política, eu acredito na aristocracia intelecto-moral. Eu tenho boas relações com as pessoas de bem de todas as gestões.” O “Monumento aos Heróis da Saúde” foi oferecido pelo artista a Conquista e o prefeito Herzem Gusmão aceitou. “Eu sugeri que fosse colocada na entrada da Juracy Magalhães, mas o prefeito achou melhor no canteiro da Olívia, onde já está um conjunto das minhas obras. Portanto, aquele lugar foi escolhido pelo poder público. Eu tive autorização, não coloquei (as obras) lá aleatoriamente, embora isso não exista por escrito.”
Na reunião do CMC, do dia 24, os membros da entidade debateram sobre a necessidade urgente de regularização do espaço público da cidade para organizar exposições culturais e garantir a diversidade de obras e de artistas. De acordo com o presidente do órgão, “a cultura é diversa, e Conquista tem um leque enorme de artistas. Sendo assim, a população não pode ter acesso apenas a um tipo de arte e um artista”.
Essa opinião é também compartilhada pela artista e especialista em Escultura Contemporânea pela Sheffield Hallam University, Inglaterra, Rogéria Maciel. Segundo ela, como as artes sempre foram elitizadas, a cidade empobrece culturalmente quando não valoriza o trabalho de outros artistas. “Na avenida que divide a cidade entre Leste e Oeste (avenida Integração), há apenas um artista que domina o espaço cultural, enquanto há muitos outros fazendo cultura, de verdade e não têm visibilidade”. Para a especialista, o conjunto das obra de Allan, de tamanhos gigantescos, formas assimétricas e cores diversas, segue uma estética “kitsch” – categoria artística de objetos vulgares, baratos, sentimentais e bregas.
Também foi pauta na reunião do dia 24 o fato do artista Allan de Kard ter divulgado na imprensa que as obras da Olívia estavam na iminência de serem tombadas pelo Iphan: mais uma surpresa para o CMC. Em 2018, o cineasta Beto Magno solicitou à entidade o tombamento das obras como paisagem cultural. “Há algum tempo fui tomado de grande admiração pelo conjunto de obras do artista conquistense Allan de Kard, e desde então, dedico algum tempo a estudar os aspectos psicosocioemocionais de sua obra.” Em caso de aceite do pedido, as obras não poderiam sair mais da Avenida Olívia Flores.
Em parecer técnico, emitido em 29 de setembro de 2020, o Iphan recomendou o “não deferimento do requerimento”. O órgão concluiu que “o bem cultural em tela não atende aos requisitos para que seja instaurado processo administrativo para chancela da paisagem cultural”. Por conta disso, o superintendente, Bruno César Sampaio Tavares, sugeriu o indeferimento da solicitação.
Duas semanas depois, no dia 7 de outubro, em outra reunião do CMC, os conselheiros tomaram algumas decisões a respeito do caso das obras na Olívia Flores e definiram nova forma de atuação do Sistema Cultural da Prefeitura. Segundo Vinícius, o assunto estava pendente entre as pautas do Conselho, que já sinalizava há algum tempo o interesse em normatizar as exposições artísticas em Conquista. “É um assunto que pode tocar em diversos lugares como preservação do patrimônio material e imaterial e a construção de identidades que sejam diversas e equânimes, facilidade e entendimento dos procedimentos para uso do espaço”, explicou.
Em nota publicada no perfil do Instagram, no dia 9 de outubro, e também enviada ao executivo municipal para providências, o CMC recomenda “remoção imediata” das obras do canteiro da Olívia e informa que a decisão foi tomada com base na polêmica dos últimos acontecimentos: instalação do “Covidão” e pedido de tombamento. “A partir da retirada, (haverá) a criação de instruções normativas adequadas e próprias ao uso do espaço, e a concepção de instrumentos de universalização das oportunidades com base na legislação em vigor e nas experiências de soluções criadas em conjunto entre este Conselho e o Poder Público Municipal”, diz a nota.
Além disso, o órgão também vê a necessidade da abertura de “um processo transparente de licitação através de edital público para dar a todos os artistas locais a oportunidade de expressar seu trabalho e contribuir com os entendimentos da população acerca de si mesma”. Observa ainda que esse edital deve buscar “através do mecanismo de cotas, contemplar em condições de igualdade aqueles artistas que vivem em condições de subnormalidade, agravadas pelo estado de Pandemia, e em locais de menor visibilidade, como é o caso de comunidades tradicionais rurais ou urbanas”.
A expectativa é que as recomendações sejam implementadas pela gestão municipal, já que anteriormente nada havia nesse sentido. É o que destaca a também a artista plástica, Rogéria. “A lei não é executada na cidade, e o processo de exposição, por ser público, precisa passar pelas pessoas”, disse. O advogado especialista em Direito Ambiental e Urbanístico e conselheiro Regional Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, Gilson Santiago Macedo Júnior, complementa: “É necessário pensar a cidade como um espaço constante de relacionamento entre os seres humanos e a arquitetura que a modela. A cidade, por ser multifacetada e diversa, deve sempre observar a inserção e participação dos cidadãos na construção do território.”
O advogado enfatizou ainda que, anteriormente, como bem aponta a recomendação do CMC, não houve qualquer consulta à população sobre as instalações públicas e que tampouco houve realização de licitação, para permitir que outros artistas apresentassem propostas. “A cidade não pode ser tratada como terra de ninguém. Não há como aceitar, em uma cidade democrática, que o particular simplesmente impunha a instalação de obra em via pública sem qualquer consulta e solicite, sem qualquer processo administrativo autorizativo.” Para ele, a relação de expansão de relações particulares ao circuito do público é “nociva” ao direito de todos à cidade.
Em nota enviada ao site Avoador, no dia 14 de outubro, a Prefeitura de Conquista, após o recebimento da recomendação do CMC, informou que há um trabalho em conjunto entre a Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel) e o Conselho de levantamento de informações técnicas, administrativas e jurídicas para criar uma regulamentação do uso do espaço público da cidade, a qual também envolve as secretarias de Administração, Serviços Públicos, Meio Ambiente, a Procuradoria Geral do Município e o Núcleo de preservação do patrimônio, histórico, artístico e cultural.
“A Secult (Sectel) informa que foi realizado inicialmente um levantamento das documentações existentes (atas, portarias, decretos), para averiguar a situação dessas obras e nesse momento, está reunindo essas informações, fazendo reuniões com os secretários responsáveis pelas pastas e com o Conselho de Cultura, para que sejam elaboradas diretrizes a fim de regulamentar o uso do espaço público”, esclareceu No entanto, não disse se seguirá a recomendação do CMC no que diz respeito a retirada das obras do canteiro da Avenida Olívia Flores.
Allan de Kard informou à reportagem no dia 17 de outubro que não tinha conhecimento da recomendação do CMC e que acredita não existir tempo hábil para qualquer decisão ainda nesta gestão. “O uso do espaço público a mim concedido, pode ser revogado a qualquer momento, tenho consciência disto.” Ressaltou também a importância de uma consulta popular na cidade sobre as obras. “O conjunto de obras, queira ou não os notáveis do CMC, já criou raízes e certamente uma consulta pública deverá ser feita para ouvir os verdadeiramente interessados. Oportunidade que o CMC terá de aferir, se de fato, estão em consonância com a voz popular. Caso essa seja a vontade dos cidadãos Conquistenses, não tenho nenhum problema em encarar a verdade dos fatos.” Também informou que, caso as obras sejam retiradas, duas delas serão destruídas.
O caso das obras na Olívia Flores
De junho de 2015 até os dias atuais, já se passaram mais de cinco anos da exposição das obras de Allan de Kard no canteiro central da Avenida Olívia Flores. Nesse período, houve uma série de movimentos realizados pelo artista, a Prefeitura, o CMC, cidadãos locais e até o Iphan, que acabou provocado a se manifestar também. Conheça cada um deles para entender melhor as questões em debate, como a utilização dos espaços públicos em Conquista e a tentativa de que as obras adquirissem a chancela de paisagem cultural.
No dia 12 de junho de 2015, Allan de Kard recebeu do chefe de Gabinete Civil de Conquista, Márcio Higino Meira de Melo, a autorização para a exposição “Pax per Vita”, em português Caminhos da Paz, no canteiro da Olívia. Composta por cinco esculturas, a exposição foi inaugurada no dia 8 de julho do mesmo ano, planejada para permanecer aberta ao público pelo período de um ano. “A autorização foi permitida com o objetivo, apresentado pelo artista, de qualificação daquele logradouro público, para que a população pudesse refletir acerca das mensagens veiculadas pelas referidas obras, sem quaisquer custos para a Prefeitura”, afirmou Márcio Higino.
Um ano depois, o artista plástico enviou, em 8 de janeiro, um documento ao prefeito Guilherme Menezes, que propunha que o município comprasse as cinco obras expostas na Olívia por R$250.000,00 ou realizasse a permuta de um terreno, localizado no Loteamento Alto da Universidade. No local, Allan dizia que iria construir um espaço multicultural, que envolvia a construção de um museu e um estúdio de cinema, além de ofertar oficinas de aprendizado e incentivo às artes. No documento, o argumento é de que a proposta seria de dupla vantagem ao município, ao incorporar as obras ao patrimônio público e ao criar um novo espaço gerador de novas experiências artísticas. “A minha ideia era aproveitar aquele local próximo a Uesb para fomentar a cultura na cidade”, afirmou Allan de Kard.
Para analisar a solicitação, o então novo chefe de Gabinete do governo Guilherme, Odir Ribeiro Freire Júnior, solicitou à procuradora do município, Luana Caetano Andrade, um parecer sobre a permuta das obras de Allan de Kard, no dia 18 de março de 2016. A resposta foi entregue, em 8 de abril do mesmo ano, pela também procuradora municipal, Juscelma Silva Leão. O parecer aponta a impossibilidade jurídico-legal de realizar a permuta no terreno indicado pelo artista, uma vez que é proibida a modificação de destinação de qualquer área transferida para o domínio municipal, de acordo com o inciso I, do art. 4º, do art. 22º e do art. 28º, da Lei nº 6.766/79, sob pena de multa ao município.
Por outro lado, o parecer jurídico informa que existe a possibilidade do município adquirir as obras da exposição “Pax per Vita”. Para isso, é necessário seguir agluns procedimentos, como formalização da apresentação do histórico do artista, que comprove o seu reconhecimento pela crítica especializada ou pela opinião pública, a justificativa da necessidade da aquisição, a inscrição da pessoa física ou jurídica no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicad) e a tramitação do procedimento pela Secretaria Municipal de Administração. Por fim, a procuradora destacou a contenção de gastos municipais, imposta pelo Decreto nº 16.833/2015, que direcionava o foco dos investimentos em serviços essenciais de saúde, educação, limpeza pública, iluminação, defesa civil e inclusão social.
Em meio a esse trâmite na Prefeitura, o cineasta Gilberto Magno Santos Filho encaminhou, em 4 de abril de 2018, um ofício ao Iphan, que solicitava a chancela de Paisagem Cultural para as cinco obras de Allan de Kard expostas na Olívia. No pedido, ele dizia que o conjunto de obras se tornou parte constitutiva do ambiente social local, e que sua remoção por parte do poder municipal sem consulta popular seria um ato de violência estética e cultural. “Ao longo dos seus cinco quilômetros de extensão, a população de Vitória da Conquista já se acostumou com a presença das cinco esculturas, testemunha de suas vivências e marco físico de sua presença em quantidade incontável de fotografias e filmes”, relatou o cineasta no documento.
Nesse ínterim, mais um capítulo do caso de Allan de Kard e suas obras. O advogado Gutemberg Macedo Júnior solicitou à Secretaria Municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel), cuja responsável era Teresa Cristina Negreiros Teixeira da Rocha, e à Secretaria de Infraestrutura Urbana Municipal (Seinfra), sob gestão de José Antônio de Jesus Vieira, informações sobre as autorizações das exposições de Allan de Kard. No documento, enviado em 7 de maio de 2018, foram requisitadas informações sobre as exposições “Caminhos da Paz” da Olívia e “Sentimentos”, localizada na Avenida Juracy Magalhães. Ele também queria saber sobre a forma de concessão dos espaços públicos e se as exposições geraram ônus financeiro ao município, quais foram os fundamentos jurídicos para a concessão dos espaços e se existiu contrapartida financeira do artista para o município ou do município para Allan em função das exposições.
“Como é que o prefeito da época, que era o Guilherme Menezes, autorizou aquela exposição num espaço público inclusive que não é adequado para o tamanho das obras?”, explicou o advogado, sobre as motivações para realizar o documento.
No dia 22 de maio de 2018, a Seinfra encaminhou um ofício ao advogado em que informava que a sua solicitação não é de competência do órgão, já que tratava de questionamento sobre a concessão do uso de área pública. A sugestão foi de que a solicitação fosse encaminhada à Procuradoria Geral do Município.
Gutemberg então enviou a solicitação ao procurador de Conquista, Carlos Murilo Pimentel Mármore, sobre a concessão do espaço público para as exposições de Allan de Kard. Em resposta, no dia 3 de agosto do mesmo ano, o órgão informou ao advogado que não encontrou qualquer formalização de autorização, cessão gratuita, doação ou aquisição das obras que fazem parte das exposições do artista. Pela ausência de documentos oficiais sobre a situação das obras de Allan, a procuradoria recomendou à Sectel que fossem tomadas providências administrativas para a verificação da regularidade da permanência das exposições nas avenidas do município.
“Eu dirigi a mesma documentação à Procuradoria da Prefeitura, para que eles me apresentassem qual foi o instrumento, o decreto, convênio, qualquer documento que autorizasse aquela exposição pública, e também não recebi nenhum documento que desse legalidade ao ato de exposição em espaço público”, relembrou o advogado.
Passado quase mais de um ano do último movimento do caso Allan de Kard, em 12 de dezembro de 2019, o CMC realizou uma reunião ordinária que, entre as pautas, estava o uso do espaço público para exposições do canteiro na Olívia do artista, que foi convidado a falar sobre a utilização do espaço público. Nela, ele contou que solicitou a permissão da exposição ao prefeito da época, Guilherme Menezes, que se mostrou interessado em manter as obras nos logradouros públicos da cidade por tempo indeterminado. Citou ainda a existência de documentos sobre os acordos para a utilização deste espaço público. Na ata da reunião, foi registrado que o secretário da Sectel da época, Nagib Pereira Barroso, não soube explicar quais documentos eram os citados pelo artista. Além disso, houve o questionamento sobre o motivo das obras não terem sido retiradas dos espaços públicos depois do vencimento de um ano.
O passo seguinte do CMC foi solicitar ao Iphan, no dia 25 de setembro de 2020, informações sobre os desdobramentos do pedido de tombamento do conjunto de esculturas de Allan de Kard, feito pelo jornalista e cineasta, Gilberto Magno Santos Filho, há dois anos, em 4 de abril. Na ocasião, o órgão foi provocado a deliberar sobre a situação criada pelo pedido, que impedia, por estar em trâmite, a recomendação para a retirada das obras das vias públicas, onde foram instaladas sem processo legal. Em 28 de setembro, o Iphan emitiu nota técnica indeferindo o pedido.
O Instituto entendeu que o objeto não se enquadra na definição de Paisagem Cultural, e que a chancela não pode ser validada apenas a partir do entendimento de um único indivíduo. Sobre a solicitação realizada pelo CMC, a nota emitida pelo Iphan apontou que não foi encontrado reconhecimento da significância cultural do conjunto de obras de Allan de Kard expostas em Conquista, o que não permitiu que elas fossem caracterizadas como referência de identidade da população da cidade. Por fim, o órgão indica que o bem cultural do artista não atende aos requisitos para chancela da paisagem cultural.
Em relação ao tombamento de obras artísticas, que é prerrogativa do Iphan, a professora do curso de Jornalismo e responsável pelo grupo de pesquisa Jornalismo, Cidade e Patrimônio Cultural, Mary Weinstein, explicou que “o tombamento a nível nacional, conferido pelo Iphan, é decidido com base na relevância que o objeto tem para o país. A nível estadual, para o estado. E municipal, para o município, obviamente”. Então explica a professora “não tem como conceber o tombamento desses objetos a nível nacional. Nem estadual. Repito, a nível municipal, vai depender do entendimento de que o objeto teria alguma importância cultural no território em que foi instalado, e o Conselho de Cultura poderá acatar ou não o pedido, se ele for feito”.
Allan de Kard, de criança disléxica a empresário e artista de grandes obras
Apesar da popularidade das obras na Olívia, especialmente do “Covidão”, no último mês, o artista plástico Allan Kardek da Silva Lessa, de nome artístico Allan de Kard, não é conhecido da mesma forma. Com quase 60 anos, ele é também um empresário de sucesso no ramo de tubos para construção civil e irrigação, que vê nas suas obras de grande porte, que usa concreto, aço, resina, madeira e fibra de vidro, um legado à cidade de Conquista.
Allan não tem formação em artes formais em uma universidade ou fez cursos com grandes artistas. Segundo ele, naquela época, não era como agora que existe a possibilidade de escolha. “A gente fazia o que tinha.” No entanto, desde criança, seu lado artístico esteve presente. Fazia os próprios brinquedos e aos 8 anos chegou a fazer um baralho customizado com personagens da família, como os nove irmãos. Mais tarde, aos 31 anos, em 1995, os fragmentos dessa obra infantil o levaram a uma exposição no Museu de Arte Moderna, com três peças de colagem.
A infância do artista também foi marcada por uma dislexia que o impediu de ler até os 10 anos. “Na terceira série, eu não lia, escrevia muito mal. Tinha uma dificuldade terrível”, desabafou. Por conta do problema, a mãe o enviou para morar com uma tia em Nova Canaã para que tivesse uma melhor assistência. Na cidade, foi colocado em uma escola pública onde fazia prova oral para as disciplinas. Por outro lado, “tinha uma facilidade em matemática, auditiva e espacial incrível. Não lia nem escrevia, mas só tirava nota boa”, relembrou. Nessa época, ele passou por uma situação que o marcou para sempre: foi escolhido orador da turma e não conseguiu falar o discurso de despedida que tinha decorado para os 300 convidados.
Ele não sabe quando exatamente acabou o bloqueio da escrita e da leitura, mas ele foi superado depois do trauma. Já no ensino médio, ele fez Agropecuária em regime de internato na cidade de Uruçuca, localizada próxima a Ilhéus. “Meu pai e minha mãe eram professores primários, e a gente sempre teve uma condição financeira muito regrada. Sempre estudei em escola pública. Então fui estudar nessa escola porque era boa. Tinha que aproveitar a oportunidade”, relembrou. Foi ali também que aprendeu sozinho o ofício de encadernação e restauração de livros ao observar o trabalho feito na biblioteca.
Ao voltar para Conquista, havia inscrições abertas para cursos de Agronomia, Letras e Ciências Sociais na Uesb. A opção recaiu em Agronomia por causa do ensino médio na mesma área. “Era a opção que havia”. Na mesma época, em 1987, descobriram o seu talento para a encadernação e restauração, o que gerou uma série de pedidos de trabalho. Ele criou então o seu primeiro negócio: uma gráfica. Foi também nesse período que conheceu a única namorada e que é a sua esposa até os dias atuais. “Há 34 anos namorei e casei, e estou até hoje com a mesma mulher”, enfatizou.
Apesar das muitas encomendas, o negócio não ia bem pela falta de capacidade de administrar. Foi então que o irmão, também técnico agrícola, Paulo Cardoso Lessa, passou por dificuldade financeira, e ele o convidou para ser seu sócio na empresa, em 1991. Dali em diante, os dois conseguiram multiplicar por quatro o empreendimento. Começaram também a produzir impresso de bobina, que servia para embalagens de estabelecimentos comerciais. Em 1998, apareceu mais um sócio, o Epitácio da Silva, com a proposta de iniciarem uma fábrica de termoplásticos. Surgiu assim a Kep, com as iniciais de Kard, Epitácio e Paulo.
Atualmente, o empreendimento é um dos maiores de Conquista. A Kep fabrica tubos para a construção civil e irrigação e uma diversidade de produtos de plástico, tem mais de 150 funcionários e vende a produção para todo o Nordeste e interior de Minas Gerais. Allan não faz mais parte do administrativo da empresa, mas, sim, do Conselho Deliberativo. Também trabalha com investimentos dos sócios na área imobiliária e passa mais de 12 horas no seu atelier de criação das obras.
Enquanto a trajetória de empresário evoluía, Allan também se dedicava a fazer pinturas em tela. Entre a produção dessa época, estão a coleção “Conquista e o Tempo”, com 46 telas, que tratam sobre o desenvolvimento da arquitetura conquistense. O vernissage foi dividido em 2010, entre o Sesc e as Casas Henriqueta Prates e Régis Pacheco. Dois anos depois, outra exposição foi realizada, a “Amigos”, que apresenta o retrato de 167 pessoas com quem o artista teve laços de amizade. Cada amigo foi presenteado com uma a sua respectiva tela após a apresentação ao público. Segundo Allan, essa foi a fase das telas.
Entretanto, paralelo a essa etapa, ele também investiu na compra de um terreno de 500 mil hectares na saída de Anagé, em 2007, para construir o Museu Allan de Kard e, assim, deixar o seu legado. No caminho para chegar à entrada do local, um percurso de 1,6 km, em 2008, foi criada a instalação da metáfora do tempo com 366 estátuas de mulheres, as guardiãs do tempo, uma para cada dia do ano. “O tempo é a matéria-prima mais perecível e importante que a vida nos oferece”, destacou o artista. Na época, as críticas recebidas diziam respeito à escolha de mulheres como estátuas. “Diziam que eram 366 mulheres que namorei. Logo eu que casei com a primeira namorada”, comentou o artista.
Só a partir de 2013, ele intensificou a produção das obras de grande porte. A primeira delas, de 24 metros, foi o Tótem Caipé, que quer dizer terra natal, e trata da colonização dos Bandeirantes em Conquista. A ideia de colocar na Olívia surgiu por sugestão de um amigo, em 2014. A coleção de cinco esculturas grandes intitulada Caminho da Paz foram feitas e instaladas no canteiro da Olívia um ano depois.
Além desse trabalho, em Conquista, também tem a obra “Guardiã da Liberdade”, dentro do presídio Nilton Gonçalves, onde estão os presos de progressão de pena, no bairro Kadija. Desde 1997, o artista faz um trabalho social junto às presas. Outras quatro esculturas estão no bairro São Pedro, na rua que dá acesso ao Condomínio Portal do Sol, empreendimento pertence ao artista. Sobre esse investimento artístico próximo a sua área de investimento, Allan apenas ressaltou que a arte está na parte pública. Há ainda o monumento ao Gari, na Avenida Integração, uma obra na Juracy Magalhães e mais outra às margens da BA -262. A última obra é o “Covidão”, que foi incorporada às anteriores na Olívia, e também tem uma versão no Museu do artista. Ao todo são, então, 14 esculturas do artista em espaços públicos que estão espalhadas pela cidade de Conquista. Suas obras também estão em espaços particulares, como na fazenda da artista Valéria Vidigal.
Em geral, as esculturas são produzidas no atelier localizado ao lado do Museu Allan de Kard, que já tem um acervo instalado no local. Entre as obras, estão “Tempos ao Vento”, três fuscas dependurados, o labirinto com fotos de crianças perdidas, cujo desenho é a digital do dedo do artista, a pirâmide, entre outros. No momento, está em andamento o Xadrez Nordestino de 900 m², que dá ênfase ao cangaço e cada peça terá quatro metros de altura. Para dar sustentação a esse trabalho, em 2019, ele criou o Instituto Allan de Kard que é o responsável por gerenciar o acervo e o museu.
O artista mencionou que, além da dislexia, também tem traços de hiperatividade. Por conta disso, realiza vários trabalhos ao mesmo tempo sem método tradicional, como esboço, croqui ou projeto de obras. Elas são criadas e produzidas intuitivamente. Da ideia arquitetônica ao cálculo estrutural, é ele quem faz tudo de cabeça. Para isso, trabalha mais de 10 horas por dia e confessa que, muitas vezes, fica obcecado com uma ideia e só melhora ao torná-la uma obra artística. “É um processo doloroso e difícil a criação. É uma mono ideia, que é torturante”. Outra característica é fazer vários projetos ao mesmo tempo. “Neste trabalho, mais que dinheiro, o que mais tem importância é o tempo dedicado a ele, pois o tempo nunca mais volta.”
Durante a pandemia da covid-19, Allan fez 36 trabalhos em mosaico de MDF com os presidentes da república. Foi um quebra-cabeça que guarda em sua casa. O projeto do “Covidão” surgiu para homenagear os profissionais que lutaram e lutam contra a doença. No entanto, o que era para ser positivo, foi entendido de outra forma. “Quando o artista produz, a obra não pertence mais a ele. O artista precisa se desvincular do ego. O artista, em geral, se preocupa muito com a opinião de terceiros. Eu fui engrossando o couro. O calendário recebeu muitas críticas. Não posso me preocupar com as críticas. Quando o artista se preocupa demais com o que os outros vão dizer, ele oblitera a criação.” Para Allan de Kard, que contabiliza uma trajetória de 25 anos em trabalhos artísticos e segue a doutrina religiosa e filosófica espírita, “ arte é de emanação divina. É por isso que ela precisa estar vinculado com o bem, a verdade e o belo.”
Entenda o que é e faz o Conselho Municipal de Cultura
O Conselho Municipal de Cultura (CMC) é um órgão de caráter deliberativo, que tem como responsabilidades atuar nas propostas orçamentárias e estratégias de política, aprovar as diretrizes presentes nos planos setoriais, além de fiscalizar a destinação dos recursos públicos. O primeiro CMC de Conquista foi criado em 1987, e servia para destacar pessoas de renome no segmento cultural e apenas aconselhava sobre as práticas voltadas para a área.
Em âmbito nacional, o 1º Conselho Nacional de Cultura surgiu em 1938, que era formado por sete membros designados pelo presidente da República, possuía prestígio junto à sociedade pela atuação cultural. No entanto, não possuía caráter fiscalizador e deliberativo. Entre os anos de 1961 a 1966, o Conselho passou a ter uma maior atuação ao participar da elaboração do Plano Nacional de Cultura. Na época, não havia um sistema de comunicação com os estados e municípios do país. Foi durante a terceira fase (1966-1990) que teve início a formulação da política de cultura nacional, principalmente pela elaboração do Plano Nacional, além dos estímulos para a criação dos conselhos culturais estaduais.
Para fomentar o desenvolvimento cultural do país e garantir a integração das ações do poder público, foi implementada em 2005 a Emenda Constitucional nº 48, do artigo 215 da Constituição, que determinou o estabelecimento de um Plano Nacional de Cultura de duração plurianual. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 71, em 29 de novembro de 2012, a cultura passou a ser incluída na Constituição entre as áreas que obrigatoriamente deveriam constituir conselhos de gestão e política. Desta forma, foi instituído o Sistema Nacional de Cultura (SNC), que instruiu a construção dos conselhos municipais de cultura, com sistemas culturais em leis próprias. A emenda também estabeleceu a necessidade da existência de planos de cultura, sistemas de financiamento ao setor, sistemas de informações e indicadores culturais, entre outros componentes.
Em 2016, o Conselho Municipal de Cultura passou a ter caráter deliberativo, consultivo, fiscalizador e normativo, seguindo o artigo que está contido na lei do Sistema Municipal de Cultura. Atualmente, o Conselho está na sua segunda gestão, que será concluída em 2021, sendo composta por 10 conselheiros titulares e 10 suplentes. A gestão do CMC divide-se em representantes dos poderes executivo (sendo os titulares Albene Ismar Miranda da Silveira, Alecxandre Magno Melchisedeck Meira e George Varanesi Neri, e os suplentes Sidilene Santos, Gilmar Dantas Silva e Daniel Pereira Novaes) e legislativo (sendo os titulares Álvaro Pithon e Nildma Ribeiro, e os suplentes Osmário Lacerda e Valdemir Dias).
O Conselho também é dividido em cinco eixos, representados por membros da sociedade civil. O Eixo A é responsável pelas expressões artísticas que englobam artes visuais, audiovisuais, culturas digitais, design e moda, representado pelo titular Vinícius Gil Ferreira da Silva e o suplente Diomilton Araújo. O conjunto formado por expressões como teatro, literatura, música, dança, circo representa o Eixo B, coordenado por Gabriela Pereira de Souza, que tem como suplente Eduardo Nunes Modesto. Representado por Danilo Bitencourt Santos (e seu suplente Arnaldo Pereira), o Eixo C trata sobre questões referentes ao patrimônio imaterial e cultura identitária – culturas populares, festas e ritos, cultura lgbt, gênero, afrodescendentes, quilombolas, indígenas. O Eixo D é relacionado ao patrimônio material, pensamento e memória (bens culturais, educação patrimonial, museus, arquivos, bibliotecas, leitura, livro), sendo coordenado por Maris Stella Schiavo Novaes, que no momento está afastada para a campanha eleitoral, e seu suplente, Afonso Silvestre de Santana Júnior, é que está à frente. E o Eixo E, que tem como representantes Armenio Souza Santos e Ana Luiza de Souza Dias, é responsável por políticas e gestão cultural (cooperação e intercâmbio cultural, formação cultural, redes culturais).
O Conselho de Cultura recebe da gestão municipal estrutura para funcionar, como um local para a realização das reuniões e do funcionamento de uma secretaria administrativa, responsável pelos documentos, processos e convocações. Os conselheiros, renovados a cada dois anos, passam por um processo de capacitação e se comprometem a defender os interesses do setor cultural e a ampliar a abrangência das políticas públicas.
Este foi um trabalho do site Avoador em parceira com a Revista Gambiarra e a jornalista Gabriela Couto. A reportagem foi realizada com entrevistas, pesquisas na internet e acessos a documentos públicos.
Fotos: Erick Gomes e Allan de Kard (Arquivo Pessoal)
Só faltou contar no perfil do empresário Allan Kardec que ele, em uma atitude deplorável, derrubou a casa de uma idosa com um trator, porque ela não queria vender a casa para ele. A senhora morava a 40 anos no local.
Como arquiteto e futuro mestre restaurador pela Universidade Federal da Bahia, posso afirmar que tais ações são uma afronta à sociedade conquistense. Cogitar o tombamento de tais “obras” não fazem jus frente aos criterios de tombamento exigidos no ambito federal (Iphan) e nem estadual e/ou municipal.
Acho que tanto o “artista”, quanto seu amigo cineasta, precisam ler bastante uma autora chamada Françoise Choay.
Isso é poluição visual. E um monumento é totalmente diferente de um monumento histórico passível de tombamento. Infelizmente, nossa cidade passou dos limites com a permanencia dessas aberrações na cidade.
Algo precisa ser feito e um limite imposto frente a essas questoes.
Respeito pela cidade e nao à POLUIÇÃO VISUAL.
Deveríamos ter menos lixo nas ruas. Dinheiro não compra bom gosto, nem talento.
Essa matéria omite o fato que se refere ao processo que o artista responde por ter passado um trator na casa de uma senhora de 80 anos.