Cães sobrevivem entre o abandono e o amor de alguns

Em Vitória da Conquista, cerca de seis mil animais estão pelas ruas da cidade e contam apenas com a assistência de projetos desenvolvidos por profissionais e os cuidados dos amantes de bichos 12 de dezembro de 2019 Jhou Cardoso

As patas cansadas queriam um pouco de repouso. O corpo em pelo e osso mostravam as marcas do abandono. Há quanto tempo estava na rua? Ninguém sabia. Quantos quilômetros caminhou para chegar até o portão daquela casa? Outra pergunta sem resposta. O frio, a fome e o cansaço fizeram com que adormecesse logo, e foi assim que a auxiliar administrativa Janaína Cardoso, 24 anos, a encontrou: dormindo em frente ao seu portão numa manhã do mês de maio.

Era uma cadelinha, com poucos dias de vida. “Estava saindo para trabalhar quando a vi. Parecia que estava morta. Mexi e logo ela abriu os olhinhos assustados. Brinquei um pouco com ela, mas percebi que não estava muito a fim de brincar. Estava era com fome. Tomou com um só gole todo o leite que dei”, contou Janaína, enquanto brincava com o animal.

Ela deixou a cadela em seu portão e saiu para trabalhar. Pensou que talvez o dono a estivesse procurando. “Deixei uma tigela cheia de leite, um pouco de água, um pano para que ela se deitasse e fui para o meu trabalho”. Ao retornar para casa, ao meio-dia, Janaína a encontrou ainda em seu portão. Ao perceber a sua alegria em lhe ver, não pensou duas vezes: a colocou para dentro de casa e passou a chamá-la de Chica.

O animalzinho pula, corre e está sempre à procura de um colo para se deitar. Aprendeu a dar a patinha como forma de cumprimento e late quando alguém chama seu nome. “Chica trouxe alegria para a casa. Fico me perguntando o que leva alguém a abandonar um pobre animalzinho. É muita maldade humana abandonar um ser indefeso como esse”, disse Janaína.

Chica

Chica foi encontrada por Janaína Cardoso, na porta de sua casa, com poucos dias de vida. Foto: Arquivo Pessoal

Segundo a Vigilância Sanitária de Vitória da Conquista, existem cerca de seis mil animais abandonados na cidade, e nem todos têm a mesma sorte que Chica teve de encontrar um lar cheio de amor e carinho. Alguns morrem de frio, de fome ou são atropelados nas vias públicas do município.

Assim como Janaína, existem outras pessoas que se sensibilizam com os animais abandonados. É o caso da professora Roberta D’ángela, que participa de uma rede solidária de proteção a esses animais. Dos seus três cachorros, dois foram retirados da rua. Seu amor pelos animais foi herdado da mãe.

“Desde quando eu era bem pequena, queria ter um. Nisso, minha mãe falou: ‘se você for pegar o cachorro, vai ter que ter um combinado: você vai cuidar, vai dar água, comida, vai limpar e vai dar banho’. E eu topei! Então, essa atitude dela me fez ter responsabilidade desde sempre”, recordou.

O primeiro animal que Roberta retirou das ruas de Conquista ganhou o nome de Milker. Ela descia a Avenida Juracy Magalhães quando o avistou andando ao lado de um garoto. Era uma cadela, e acompanhava o menino como se ele fosse seu dono. Roberta notou que ela estava ferida: tinha um corte gigante na perna. Então, parou o garoto e o chamou para conversar.

“Quando comecei a conversar com ele, descobri que a cachorra era de rua e que vivia na porta de sua casa”.  O menino disse então que ele e seus familiares haviam viajado para o enterro de uma avó em outra cidade e, quando retornaram, a cachorra estava com aquele machucado. Provavelmente, alguém teria passado um facão em sua pele. “Eu não posso ver isso e fingir que não estou enxergando”, pensou Roberta.

Cães abandonados

Segundo a Vigilância Sanitária, existem cerca de 6 mil animais abandonados em Conquista. Foto: Jhou Cardoso/Avoador

Sensibilizada com a situação do animal, ela pediu ajuda a uma amiga para levar o animalzinho a uma clínica veterinária. Lá, procedimentos cirúrgicos foram feitos para que a ferida cicatrizasse. “A gente conseguiu alguém para dar um lar temporário à ela, porque os curativos precisavam ser trocados duas vezes por dia. Compramos os remédios e, depois que o animal foi curado, conseguimos uma pessoa para o adotar”.

Roberta e outras pessoas da cidade fazem parte de um tipo de rede de solidariedade. “Quando todo mundo se ajuda, ninguém se aperta. O cuidar tem várias dimensões: tem o cuidar financeiro, o cuidar do carinho, têm várias coisas que cada ser humano poderia estar fazendo para ajudar os animais de rua”.

Um dos últimos cachorros que ela ajudou foi Bernardo. Ele tem um ano e meio de vida. Tinha um dono que já pensava em abandoná-lo quando ele parou de latir para afugentar os desconhecidos. Na noite do dia 22 de junho deste ano, assustado com os fogos, Bernardo fugiu de casa e acabou sendo atropelado. Vendo o animal naquela situação, o dono pensou em sacrificá-lo. Foi aí que Roberta e sua rede de solidariedade decidiram intervir.

A pancada provocada pelo acidente foi tão forte que Bernardo perdeu o controle das suas funções fisiológicas e o movimento dos seus membros inferiores. Desde então, usa fraldas que sempre precisam ser trocadas. “É um cachorro super-alegre, super-dócil e, mesmo com todas essas dificuldades, ainda mostra pra gente a vontade que ele tem de viver”, salientou. Hoje, graças à Roberta e sua equipe, ele também encontrou um lar.

Cuidado com os animais 

São vários os motivos que levam as pessoas a abandonarem seus animais de estimação. Roberta acredita que o principal deles é o fato de alguns enxergarem o animal como uma coisa, um objeto e não como um ser vivo que sente, ama, tem fome, sede e necessita dos nossos cuidados.

O médico veterinário, Luís Cláudio, que trabalha na Vigilância Sanitária de Vitória da Conquista, comunga das mesmas ideias de Roberta. “Muitas vezes, a gente vê que a pessoa pega um animal para criar e, na hora que ela enjoa, bota na rua. Isso tem trazido um número maior de animais para a rua. A população não tem a consciência de que o animal não é um brinquedo. Se você não tem condições e nem tem tempo de criar, não pegue, porque um animal dentro de sua casa vai precisar de atenção, de carinho, de alimentação e de um veterinário.”

No ano de 2018, nasceu na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) o projeto de extensão “Ações educativas sobre os cuidados com os animais domésticos e de rua para promoção da saúde única”, coordenado pela professora do curso de Biologia, Gabrielle Marisco. O projeto surgiu com o intuito de conscientizar alunos, professores e funcionários da universidade a cuidarem dos cachorros e gatos que vivem espalhados pelo campus.

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Ação educativa realizada pela professora Gabrielle Marisco em parceria com o médico veterinário, Rodrigo Mendes. Foto: Avoador

“Esses animais sentem fome, frio, sede. E como não há um apoio da sociedade civil e do governo municipal para mudar essa realidade e não existe sequer um centro de controle de zoonoses na cidade, eu comecei a pensar em desenvolver algumas ações no sentido de educar as pessoas do campus para alimentar esses animais, não agredi-los, ou maltratá-los,” explica Gabrielle.

O projeto cresceu e ultrapassou os limites da universidade. Hoje, ao lado de três alunas bolsistas de extensão, a professora Gabrielle realiza ações educativas sobre o respeito e o cuidado com os animais de rua e domésticos também fora da instituição. “Nas escolas fazemos atividades em forma de palestras, brincadeiras, de conversa mesmo com os alunos. Depois, fazemos um bingo sobre o respeito aos animais e, ao final, damos um brinde”, conta.

Outra ação do projeto, realizada em parceria com o curso de Medicina Veterinária da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FTC), é a visita a bairros periféricos de Conquista para promover a vacinação e a vermifugação de animais domésticos. E além disso, há ainda os mutirões de castração, que acontecem periodicamente no município.

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A ação aconteceu no bairro Nova Cidade com a realização de castrações. Foto: Avoador

“Embora as ações educativas sejam extremamente importantes, entendemos que não adianta só educar a população acerca desse assunto. É preciso mostrar para as pessoas a importância de levar seus animais ao médico veterinário, para cuidar, vacinar, vermifugar e castrar. O controle populacional de animais aqui em Conquista só vai acontecer quando houver castração”, explica Gabrielle.

O problema, porém, é o preço da castração, que costuma ser muito elevado. Por isso, o projeto atende a comunidades de baixa renda, onde, segundo Gabrielle, as famílias possuem não apenas um, mas sempre dois ou mais animais de estimação. “Uma castração de gato, aqui, em Vitória da Conquista, pelo último levantamento que fizemos, gira em torno dos R$ 400,00 reais, por exemplo. É um valor inviável para essa população”, afirma.

Mutirões de castrações 

O médico veterinário Rodrigo Mendes desenvolve ação similar à de Gabrielle. Ele não só recolhe animais de rua e os encaminha para adoção como também é o idealizador do projeto Vet Nômades, no qual, juntamente com outros diversos colaboradores, faz mutirões de castração em um castramóvel por todo o Brasil.

O Vet Nômades nasceu em julho de 2018, quando uma de suas amigas se mudou de São Paulo para a Bahia. Durante a viagem, ela acabou adotando duas gatinhas. Com o passar do tempo, elas começaram a dar crias, chegando a ter 80 filhotes. Sem condições financeiras de castrar todos os animais, a moça pediu ajuda ao Rodrigo.

Sabendo que a cidade na qual a amiga estava morando não tinha estrutura especializada para a realização de castração, o médico veterinário teve a ideia de criar o chamado castramóvel: um ônibus adaptado e equipado com materiais e aparelhos cirúrgicos para que o procedimento possa ser feito em diferentes lugares.

“Quando comecei a divulgar para os meus amigos que precisava comprar um ônibus para fazer um castramóvel,  um começou a depositar um pouco de dinheiro, outro depositou mais um pouco. Tirei um pouco das minhas reservas e aí a gente foi montando toda a estrutura. Tudo no coletivo mesmo! Foram muitas pessoas envolvidas: doando um pouco do seu trabalho, valores em dinheiro, materiais, etc.”, relatou Rodrigo.

Além de apoiar ações de castração da professora Gabrielle, em  Conquista, o Vet Nômades já atendeu Belmonte, Mairi, Salvador, Porto Seguro, Canavieiras, Maracujipe, Cruz das Almas e já tem viagem marcada para Itabuna e, logo em seguida, cidades de Pernambuco.

castração

O castramóvel é um ônibus adaptado e equipado com materiais e aparelhos cirúrgicos para que o procedimento possa ser feito em diferentes lugares. Foto: Arquivo/Avoador

Um dos mutirões de castração realizados por Gabrielle em parceria com o Vet Nômades e com o Grupo Olhar Pet Solidário aconteceria entre os dias 25, 26 e 27 de outubro, no Ginásio de Esportes da Uesb. No entanto, foi suspenso pela Vigilância Sanitária de Conquista após a divulgação de uma nota do Conselho Regional de Medicina Veterinária, segundo a qual a ação era ilegal, pois o projeto não estava registrado no órgão.

A nota ainda informava que o médico veterinário havia sido multado em junho, juntamente com a Prefeitura de Mairi, no centro-norte baiano, por conta de campanha realizada na cidade, e que ainda seria notificado pelas ações realizadas nas cidades de Canavieiras e Cruz das Almas.

O médico Rodrigo Mendes nega que as castrações são ilegais e afirma que tinha em mãos um documento válido para que os mutirões de castração ocorressem durante um ano. “Em Vitória da Conquista, já realizamos três mutirões e, todas às vezes que a vigilância Sanitária veio nos inspecionar, entregamos a mesma documentação para eles. Eles ligavam para o Conselho que afirmava que a liberação era válida”.

Rodrigo contou ainda que não recebeu multa nenhuma: “Primeiro: quem realizou o evento foi a Prefeitura de Mairi. Então, a Prefeitura recebeu uma notificação e uma multa sim, mas eles não podem multar quem não faz parte dos seus associados. A Prefeitura não faz parte de lá, então eles não deveriam me notificar e nem me multar. Mas se eles fizeram isso, eu não recebi nenhuma multa no meu endereço”.

Segundo ele, trata-se de perseguição e de uma tentativa de fazer reserva de mercado. “As clínicas locais se sentem incomodadas, começam a fazer grandes pressões e as Associações de Médicos Veterinários começam a intervir, tentando fazer com que essas ações não aconteçam para poder garantir lucro ao mercado local. A gente pensa totalmente o contrário, porque as pessoas que a gente atende jamais levariam os animais para as clínicas para realizar as castrações.”

Atualmente, Rodrigo se encontra na cidade de Cancún, no México. Ele foi convidado pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária daquele país para realizar um mutirão de castração em animais de pessoas de baixa renda do país. Todos os procedimentos foram oferecidos gratuitamente para a população mexicana.

“Isso é importante porque é meu primeiro mutirão internacional e o meu projeto está sendo reconhecido e requisitado por órgãos tão importantes quanto aqueles que existem no Brasil. Aqui, eles me querem muito bem porque viram o meu trabalho de perto!”

Além de estar participando desse mutirão de castração, Rodrigo ainda busca parcerias como a do Dr. Jeff Young, conhecido por atender de cães a jacarés e ter um programa no canal de televisão Animal Planet. “Estamos organizando junto com o Jeff e o pessoal do Animal Planet um mutirão internacional dentro do Brasil, na Amazônia! A nossa intenção é fazer com que essa ação tenha muito mais visibilidade e seja muito mais difundida pelo país e que a gente consiga chegar em locais onde a veterinária acaba sendo muitas vezes inacessível.”

Confira no vídeo abaixo como funciona o processo de castração e o projeto da professora do curso de Biologia da Uesb, Gabrielle Marisco.

* O Avoador entrou em contato com o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária para obter um posicionamento sobre a suspensão da castração em Conquista, mas o mesmo disse que não poderia conceder entrevista por falta de tempo na agenda.

Foto de capa: Jhou Cardoso/Avoador

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