Coletivo Autista de Vitória da Conquista reúne universitários em defesa da visibilidade da neurodivergência

Criada no final de 2022, a organização tem integrantes da Uesb, Ifba, Ufba e das faculdades privadas da cidade 3 de abril de 2024 Tiago de Lima

“É muito foda você crescer assim, com a consciência de que não parece que o mundo é feito pra você”, disse ao microfene o estudante Vinicius Brito, num evento promovido pela Pró-Reitoria de Ações Afirmativas (Proapa) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), no dia 22 de narço de 2023, no Teatro Glauber Rocha, localizado no campus de Vitória da Conqusita. Ele e outros universitários com Transtorno do Espectro Autista (Tea) e o restante do público presente partilhavam um espaço em que podiam falar sobre suas vivências, experiências e desafios. Era esse também o segundo evento público em que o Coletivo Autista de Vitória da Conquista (Caut) se manifestava enquanto um grupo.

Vinicius Cabral, estudante do curso de Cinema e Audiovisual na Uesb e um dos fundadores do coletivo. Foto: Arquivo Pessoal.

“Eu falei com as meninas do Naipd e com os meus colegas que ajudaram a criar esse coletivo, [que ele existe] não porque eu quero, mas porque a gente precisa”, enfatizou o jovem em outro momento.

O Núcleo de Ações Inclusivas para Pessoas com Deficiência (Naip), citado por Vinicius, está situado no térreo do prédio da Biblioteca do campus de Conquista, e é vinculado à Proapa, que desenvolve ações com as pessoas com deficiência inseridas no ambiente acadêmico e busca garantir seus direitos dentro da instituição. Já o Caut, surgiu a partir de um grupo de WhatsApp, criado após uma conversa que um dos membros fundadores teve com a pedagoga e linguista Giulia Boaretto, que cursava o doutorado em linguística na Uesb, e foi inspirado em iniciativas semelhantes que já existiam em outras universidades país afora. 

Desde a criação, no final de 2022, a organização reúne estudantes da Uesb, Ifba (Instituto Federal da Bahia), Ufba (Universidade Federal da Bahia) e das faculdades privadas da cidade. Não existe um número fixo de membros e as reuniões acontecem quinzenalmente e tem uma média entre 8 e 12 estudantes participantes. Inicialmente, elas ocorriam em uma sala do Módulo de Medicina da Uesb e, depois, passaram a ser feitas de forma remota, por meio de videochamadas.

“É um local de acolhimento e troca de experiências”, explica a psicóloga Julia Silva, que possui especializações nas áreas de Saúde Mental, Psicopedagogia e Análise Aplicada do Comportamento com foco em pessoas com Tea. Segundo a profissional, que anteriormente fez parte da equipe do Naipd, além de ser um espaço em que as pessoas podem falar sobre suas vivências e experiências, o coletivo permite o debate mais aprofundado sobre os direitos sociais. “É necessário que essas pessoas possam falar e ser ouvidas. Elas existem, estão aqui e precisam ser ouvidas.”

A psicóloga Julia Silva, especialista em TEA e ABA, foi significativa na criação do Caut. Foto: Arquivo Pessoal.

No último ano, 2023, só no campus de Conquista da Uesb, o Naipd atendeu 11 estudantes com Tea. Além destes, mais oito eram assistidos em Jequié e um em Itapetinga, cidades onde se localizam os outros dois campi da instituição e que também contam com a presença da ação inclusiva.

A reportagem não conseguiu informações acerca de quantas pessoas com autismo são estudantes dos campi da Uesb, Ifba e Ufba em Vitória da Conquista. Só foi possível confirmar os números de atendidos pelo Naipd. Há ainda muitas pessoas com deficiência que não buscam o serviço, seja por desconhecimento de sua existência, ou por não se reconhecerem e/ou não se aceitarem como PCDs ou por não saberem que têm alguma deficiência e que talvez precisem do suporte por ele ofertado.

Sobre o Tea

De acordo com o site especializado da Fundação Autismo e Realidade, criado e mantido pelo Instituto Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil (Pensi) e pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal, o Transtorno do Espectro Autista (Tea) reúne desordens do desenvolvimento neurológico presentes desde o nascimento ou começo da infância. Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-5, que é referência mundial de critérios para diagnósticos, os indivíduos dentro deste espectro podem apresentar déficit na comunicação ou interação social e padrões restritos e repetitivos de comportamento, como movimentos contínuos, interesses fixos e hipo ou hipersensibilidade a estímulos sensoriais. 

A fonoaudióloga Maria Clara Maia, especialista em Tea e colaboradora da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Conquista, ressalta que essas são características gerais, mas cada pessoa com autismo é única e apresenta uma combinação singular de cada uma delas. “Avaliamos cada pessoa de maneira singular.”

Encontro de si no outro

O estudante do curso de Filosofia e calouro da Uesb, Florence Santos, 19 anos,  teve um diagnóstico tardio de Tea. Apesar disso, segundo ele, “não tão tardio quanto o de outras pessoas. Eu fui diagnosticado no final do ano de 2022, em setembro, quando tinha 17 anos”. Ele explicou ainda que já esperava ser uma pessoa com Tea, por também ter o diagnóstico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), pois existem semelhanças entre as características dos dois transtornos. Durante a infância e adolescência, sempre foi “taxado de autista”, como uma ofensa. “Quando você é um criança neurodivergente em um ambiente predominantemente neurotípico, você sofre muito.”

Florence Santos, estudante do curso de Filosofia na Uesb. Foto: Arquivo Pessoal.

Na literatura sobre transtornos, como explica Olívia Baldissera, “a expressão ‘neurodivergente’ se refere a pessoas que têm um desenvolvimento ou funcionamento neurológico diferente do padrão esperado pela sociedade em geral, enquanto ‘neurotípico’ trata de um indivíduo que tem um neurodesenvolvimento considerado regular’.”

A junção das particularidades de uma pessoa com TEA com as singularidades propiciadas pelo TDAH fez com que o Florence tivesse uma infância e adolescência bastante conflituosas, tanto dentro de si quanto em relação ao mundo exterior e às outras pessoas. Ele relata o quanto não o entendiam por ser “diferente”, não se enquadrar em um padrão idealizado pela coletividade.

Na época, o universitário fazia terapia com uma psicóloga e acompanhamento com uma psiquiatra especializada havia um certo tempo, e ele mesmo se deu conta de que poderia ser uma pessoa situada dentro do Espectro Autista. Ao conversar com as profissionais, elas o auxiliaram no processo de diagnóstico, que foi importante para compreender muitas questões as quais havia vivenciado ao longo de sua trajetória e que não compreendia totalmente. “Mas sempre tive a sensação de que não era uma pessoa ‘comum’. Eu só descobri o meu autismo por causa de um relacionamento romântico que eu tive”, ponderou. “Eu acredito que é só quando você entra em contato com as pessoas de forma mais íntima que você descobre mais sobre você mesmo, em todos os sentidos.”

Excesso de independência

Assim como Florence, o graduando em Engenharia Elétrica, no campus de Conquista do Ifba e natural de Itabuna, Afonso Pinheiro, 31 anos, também teve um diagnóstico tardio. “Eu acho que receber o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (Tea) já é a resposta para muita coisa”, pontuou. “Eu sou diferente, e eu sei disso. Eu sei do meu dia a dia, das dificuldades que eu passo e do meu relacionamento com as pessoas.” Nesse processo de descobertas, a universidade foi fundamental. “Eu recebi o diagnóstico em 2019, encaminhado através do Setor de Psicologia do Ifba de Conquista”, lembra.

O setor de Psicologia do Ifba, segundo informações institucionais, “visa promover e ampliar a formação integral dos estudantes por meio de atividades e eventos de caráter sócio-educativos”, tendo “ações que buscam garantir o bem-estar biopsicossocial dos estudantes”, como a preparação e orientação para o curso e mercado de trabalho e a preservação da saúde mental”. Essas ações devem respeitar “a ética e os direitos humanos” e sua forma de trabalho é direcionada “sob a perspectiva de prevenção, planejamento e continuidade”. No entanto, o setor não realiza atendimentos clínicos, há apenas encontros de orientação e resolução de problemas pontuais. Quando há casos de estudantes com necessidade de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, eles são encaminhados a profissionais da região Sudoeste.

Afonso buscou o Setor de Psicologia porque sentia que era muito dependente da mãe e queria ser mais independente. “Para isso, precisava me entender e entender os motivos de ser ‘diferente’ primeiro. Eu não vou ter a minha mãe a vida toda,  então eu tenho que pensar em formas de ser independente.”

O jovem Afonso Pinheiro teve um diagnóstico tardio. Foto: Arquivo Pessoal.

Decidido a mudar de vida, em 2021, além do curso de Engenharia Elétrica, no Ifba, que é integral e costuma ter atividades nos períodos da manhã e da tarde, ele também passou a frequentar, no período noturno, o curso de Técnico em Eletrotécnica no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), onde conseguiu uma bolsa de 100%. Somando aos dois cursos, tinha ainda que lidar com as tarefas domésticas, pois não é da cidade e estava morando sozinho. Apesar do interesse, não aguentou a sobrecarga de trabalhos e passou a ter crises de ansiedade. “Eu passei os semestres e os anos que eu vivi em Vitória da Conquista muito estressado, muito angustiado, muito triste, desmotivado e cansado, porque estar dentro da minha casa me causava estresse, e eu não conseguia dar conta de tudo.”

Ao procurar novamente o Setor de Psicologia do Ifba, já em 2022, ele foi direcionado ao Núcleo de Práticas Psicológicas (NUPPSI), da Uesb, e, após um longo período de reflexões e conversas que teve com profissionais médicos, decidiu que o melhor para a sua saúde mental era solicitar o trancamento dos cursos e retornar à sua cidade natal, no sul da Bahia, para ficar com a família. O futuro engenheiro eletricista reconhece o quanto foi significativo o suporte institucional da Ifba nesse processo de autoconhecimento e realização, algo que ainda não terminou. 

Ao voltar para Itabuna, Afonso passou a se dedicar à escrita de um livro sobre autismo intitulado “O Mundo das Palavras que Voam”. Ele também entrou com um processo de transferência externa para continuar o seu curso de Engenharia Elétrica na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).

Um alienígena na multidão

Para a estudante de um curso da área de Tecnologia da Informação (TI) Marie Silva*, 20 anos, nome fictício e entrevistada sob anonimato, ter o diagnóstico de Tea significou saber mais sobre si mesma. “Eu sempre me senti estranha e diferente. Sentia coisas diferentes. Tinha mais dificuldade em coisas que a maioria [das pessoas] não tinha.” Ela contou ainda que, ao longo da infância, em todo o seu período escolar, cresceu sendo chamada de coisas como “sonsa, sem ação, lenta e irresponsável”, porque não conseguia acompanhar as outras crianças e se desenvolvia num ritmo considerado lento. “As pessoas falavam que eu forçava ser ‘estranha’, e que isso era minha personalidade, mas até quando eu tentava agir ‘normal’, eu me sentia como um número ímpar no meio dos pares.” 

Quando Marie recebeu o diagnóstico, finalmente entendeu que não “fingia” nem “forçava” ser diferente. A infância então fez sentido e o seu sofrimento por sentir-se “um alienígena no meio de todo mundo” estava explicado. Mas, o que parecia resolvido, depois de um tempo, virou um problema. “Agora que sei o que tem de errado comigo, vou consertar”, passou a pensar, segundo relembrou. Ela começou a fingir não ser uma pessoa com autismo e, “com muito mais facilidade, sabendo como e porque era diferente”, descreveu. “Como menina, eu não pareço autista naturalmente. Então até hoje, eu conheço pessoas e finjo que não o sou para ser aceita e me encaixar, porque todas as vezes que eu digo que estou no espectro, as pessoas acham que eu estou falando isso por ‘modinha’ e que não tenho o diagnóstico e só quero fazer parte de um grupo”, afirmou.

Segundo a psicóloga Julia Silva, a ausência de habilidades sociais ou o seu não-desenvolvimento total, característica comum a muitas pessoas com Tea, costuma ser uma adversidade às pessoas que estão dentro desse espectro. “Estamos inseridos em uma sociedade cheia de códigos e regras com interpretações, e as interpretações desses códigos e as percepções dessas regras têm grande implicação nas pessoas com Tea, porque as interpretações a partir de quem tem o diagnóstico, são um tanto quanto diferentes, a partir de níveis de identidade, por exemplo”. O abraço e o aperto de mão que, para as pessoas neurotípicas, no Brasil, como parte dos traços culturais, são formas de cumprimento, acolhimento e transmissão de calor humano, para uma pessoa com Tea, que é considerada como neuroatípica, podem não ter significado algum ou podem, ainda, não sentir essa necessidade de abraçar e apertar as mãos.

A fonoaudióloga da Apae, Maria Clara Maia, ratifica que o autismo é um transtorno que não tem cura. “A gente só cura doenças, e o autismo não é uma doença, é um transtorno de desenvolvimento que precisa de diagnóstico e tratamento precoces, para que os indivíduos possam desenvolver as habilidades e alcançar uma vida independente e autônoma”. Por isso, segundo ela, a criação de um coletivo de pessoas com autismo mostra representatividade e fortalece a noção de identidade dos membros. “Os grupos precisam se sentir representados, e os indivíduos precisam se reconhecer no outro para se sentir fortes”, enalteceu. “É muito bom ver que as pessoas do grupo o qual você faz parte estão crescendo e que você faz parte dele”, completou.

A fonoaudióloga Maria Clara Maia trabalha com pessoas com TEA há alguns anos. Foto: Arquivo Pessoal.

Seguindo essa mesma perspectiva, a psicóloga Julia defende que a única maneira de a universidade e as demais instituições passarem a ser ambientes menos hostis e mais acolhedores à comunidade autista é por meio do conhecimento. “É preciso ler, debater sobre os assuntos, e é necessário que se promova rodas de conversa com a participação dos grupos sociais”, disse. As pessoas neurotípicas precisam, cada vez mais, se abrirem àquelas neurodivergentes. “Essa outra pessoa (neurodivergente) precisa chegar até nós e se sentir acolhida, no sentido de darmos abertura para que ela possa expressar o que pensa, o que sente e o que gosta, e lembrarmos que, antes de ser uma pessoa com autismo, ela é uma pessoa, que como qualquer outra, tem suas singularidades e peculiaridades.”

 

Foto destaque: Reprodução

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