20 de setembro de 2022

Fala da advogada sobre infiltração do comunismo nas igrejas evangelicas está fora de contexto

Circula em portais de notícias religiosas um vídeo com uma fala descontextualizada da advogada Laura Astrolabio,

Circula em portais de notícias religiosas um vídeo com uma fala descontextualizada da advogada Laura Astrolabio, sobre um suposto projeto político da “esquerda comunista” que visa infiltrar-se em igrejas evangélicas, para a cooptação de crianças em prol das políticas comunistas.

 

Em evento da Revista Fórum, intitulado “Mulheres no poder em um momento bolsonarista!, transmitido ao vivo no domingo, 11 de setembro de 2022, a advogada e estudante de Mestrado em Direitos Humanos (UFRJ) Laura Astrolabio dialogou com a candidata a deputada estadual, Benny Briolly (PSOL, RJ), que se destaca como primeira vereadora transsexual do Rio de Janeiro, e a ativista política e candidata a deputada estadual Chirley Pankará (PSOL, RJ), que é liderança indígena do povo Pankará, sob a mediação do jornalista Anderson Morais.

 

O grupo de debatedoras abordou temas ligados às pautas feministas, etnicidades, patrimônio sociocultural, intolerância religiosa, gênero e sexualidade. Tais temas tiveram como fio condutor o combate às pautas políticas conservadoras da extrema-direita. O trecho do debate que vem ganhando repercussão nos meios de comunicação religiosos, por meio de vídeo, é um fragmento da fala de Astrolábio, em que ela afirma.

Acho que a gente precisa conversar coletivamente, No mestrado eu cheguei a falar uma vez que a gente tinha que se infiltrar nas igrejas. Outro dia eu encontrei uma amiga minha da época em que eu era da igreja, porque eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o Cristianismo no Brasil”, disse, e continuou, “eu falei ‘amiga, vamos voltar pra igreja’, porque hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás, agora, que nós temos que voltar para a igreja, ou ir para ela, a gente tem. Ela [e a amiga] disse que eles (fiéis) não iriam permitir, e eu disse ‘quem disse que a gente vai falar pra eles? a gente vai para a escolinha dominical’. O que mais a igreja quer é pegar uma irmãzinha pra tomar conta das crianças. Enquanto eles estão no culto, tem uma sala de aula cheia de crianças. Aí você pega a Bíblia e começa a falar que Jesus amava os pobres e que os ricos não entrarão no Reino dos céus…”, explicou a advogada. 

 

A fala em questão ocorre após a participante ser questionada sobre a existência dos “pobres de direita”. Na resposta que abordou a  integração entre política e religião,  a advogada deu um exemplo  para ilustrar como esquerdas podem enfrentar o conservadorismo da extrema-direita: “infelizmente essa pessoas [os pobres de direita] não têm acesso a esses debates, a essas discussões, os debates feitos dentro dos partidos políticos não chega a essas pessoas […], então eu acho que temos que pensar em estratégias para fazer esse debate chegar lá, a eles”, disse.

O trecho selecionado do discurso de Laura Astrolábio, usado para denunciar planos da “esquerda comunista para ocupar as igrejas”, segundo várias postagens em mídias sociais,  refere-se a possíveis estratégias de enfrentamento da extrema-direita. Na concepção da advogada, as pessoas devem se “armar” (simbolicamente) de seus direitos constitucionais e lutar por suas demandas, “o Estado é laico e a gente tem que cobrar”. Para ela,  a extrema-direita deve ser combatida por meio de ferramentas de reeducação cívica e militância organizadas.

Ouvida para avaliar o caso, a pesquisadora em Comunicação e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha pondera:

“Ao falar para um público de esquerda (seguidores da revista Fórum), a advogada Laura Astrolabio opta por usar as igrejas evangélicas em exemplo, por meio de um discurso crítico, com expressões exageradas como ‘eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o cristianismo no Brasil’, e de oposição, como ‘hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás’. Ela introduz a fala sobre o processo educativo com ‘a gente tinha que se infiltrar nas igrejas’ e segue com o discurso crítico e o exemplo do espaço importante das escolas dominicais com as crianças”.

Magali Cunha considera que “não há qualquer problema em alguém enxergar que as  igrejas, por meio das escolas dominicais e do trabalho com crianças, sejam vistas como espaço em que a educação para a realidade da desigualdade social (pobres x ricos) deveria ser praticada. Porém, o que vemos neste caso é que o uso do exagero, “eu acabo com o Cristianismo”, junto com “a gente tinha que se infiltrar”, mais o termo “criancinhas” como alvo de uma possível ação educativa para a crítica, formam um conjunto de expressões inadequadas em um discurso público pela internet, que certamente geram desconforto justificável em pessoas das igrejas evangélicas, e são um ‘prato cheio’ para produtores de desinformação e de pânico moral contra candidaturas de esquerda nestas eleições, tendo como alvo os o segmento evangélico”.

A professora acrescenta que “na era digital, produtores de conteúdo e participantes de espaços de debate precisam usar de sabedoria com o que expressam publicamente. A máxima hoje é ‘tudo o que você disser pode ser usado contra você e contra seus pares’, afinal, tudo pode ser manipulado e sempre há quem acredite no que se produz deliberadamente para enganar”.

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Bereia classifica o conteúdo disseminado em vídeo em espaços digitais religiosos, com trecho da fala da advogada Laura Astrolábio, em evento da revista Fórum, como enganoso.

O discurso em questão, que contém termos críticos e exagerados sobre as igrejas, foi recortado, descontextualizado e relativizado para tornar possível a defesa de uma proposta de intervenção política organizada por uma suposta “esquerda comunista”. A fala completa da advogada diz respeito a políticas de militância e enfrentamento ao racismo e misoginia, atuação política baseada em um regime de Estado laico e democrático.

Xereta classificou o conteúdo como Deturpado.

Reportagem publicada originalmente no Coletivo Bereia, parceiro do Site Avoador

Checagem realizada por Hugo Silva

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